São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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MOSTRA DE DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA

Cultura de massa invade textos

SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é difícil encontrar semelhanças entre "Sem Memória" e "Deve Ser do Caralho o Carnaval em Bonifácio", textos de Pedro Vicente e Mário Bortolotto, respectivamente, parte da Mostra de Dramaturgia Contemporânea.
Em certo sentido, ambos são herdeiros dos romances urbanos de Rubem Fonseca e dos flagrantes dramáticos de Plínio Marcos. A diferença é que os personagens são de hoje, a maioria de uma geração entre 20 e 30 anos, o que mantém a violência temática, mas muda o modo e o tom das peças.
Talvez a invasão maciça da cultura de massa que os formatou seja responsável por um protesto não assumido contra a estereotipia da TV e da publicidade, mais evidente no caso de Vicente, que escreve sobre sujeitos adoecidos pela mídia como quem já está "completamente infectado". Mostrando a informação invasiva pela ótica de quem é fruto da invasão, cria uma dramaturgia que recusa o aprofundamento.
"Sem Memória" sofre interferência de uma teatralidade estranha, que não distingue real de figurado e mistura cinismo e delírio na personagem do publicitário Ulysses, que planeja um programa de rádio sobre literatura num coquetel de marketing com a namorada arrivista.
No texto de Bortolotto, o desejo de outro espaço reaparece e, como todo o resto, é literal, explicitado no diálogo grosso que disfarça o sonho de felicidade projetado na França, que apenas Lu, a irmã, consegue alcançar. Fauzi Arap assume o naturalismo cru do texto para descarná-lo aos poucos, até chegar à delicada solidão final.
Luah Guimaraez e Elcio Nogueira, solidários, contracenam com um Renato Borghi minimalista, frágil, maltrapilho nas placas de publicidade decorando o corpo, compondo um haicai contemporâneo da exclusão social.
Completando a mostra, "Só, Ifigênia, sem Teu Pai", de Sergio Salvia Coelho, repete o território movediço das outras peças, mas se distancia delas pelo cultivo da palavra. O recurso ao rádio prioriza a fala poética, retórica, e mantém o deslocamento temporal em narrativa densa e pouca dramatização, entrelaçando os motivos míticos à sociedade do espetáculo, numa espécie de roteiro cênico que discute a angústia da influência, a existência vicária dos famosos e a confusão de intimidade e publicidade. Essa linhagem temática, que Márcio Aurélio conhece bem, lhe permite tratar o palco como uma tela de Edward Hoper, em que os atores se inscrevem como afrescos de um tempo indefinido. Valendo-se da familiaridade com Luah Guimaraez e Débora Duboc, com quem criou o grupo Razões Inversas, investe no retardamento do tempo, atuado por Duboc numa Ifigênia distendida no sacrifício do herói e seu clichê.


Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP



Mostra de Dramaturgia Contemporânea    
Quando: hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde: Teatro Popular do Sesi (av. Paulista, 1.313, tel. 3284-3639)
Quanto: entrada franca




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