São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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ANÁLISE

Cinema é cerebral, mas não racionalista

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"Glória Feita de Sangue" era como um imenso jogo de xadrez esférico: os generais eram os reis encastelados; o coronel (Kirk Douglas) era, em seus movimentos perpendiculares da trincheira à caserna, o cavalo; e os soldados, os peões obrigados a andar para frente.
Stanley Kubrick, que chegou a se sustentar na juventude jogando xadrez na Washington Square, nunca deixou de comparar a realização de um filme a um jogo de xadrez. Ambos eram, para ele, uma espécie de batalha mental. A intensidade e a capacidade de concentração garantiram-lhe, desde cedo, a vitória nesse campo.
A cada filme uma surpresa, a cada surpresa uma polêmica, a cada polêmica um novo sucesso: Kubrick conseguiu aprofundar as obsessões as mais inconfessáveis sem perder os produtores e o público de vista -ao menos até "Barry Lyndon", filme que marca seu primeiro fracasso, mas também o paroxismo de sua habilidade de mise en scène, o auge de seu domínio do "específico fílmico".
Se John Cassavetes, outro grande gênio do cinema americano do pós-guerra, subverteu o esquema da decupagem clássica ao submeter o tempo e o espaço à verdade do corpo, Kubrick esteve sempre a encenar o cérebro e a ver o mundo como uma projeção deste.
A mansão fantasmagórica de "O Iluminado" é a extensão da mente doente do personagem de Jack Nicholson; a grande mesa redonda e luminosa de "Dr. Fantástico" é o cérebro enlouquecido de um sistema (militarista) que ruiu. O cinema de Kubrick é o mais cerebral, mas não o mais racionalista. Não fez mais do que escancarar a fissura no projeto racionalista ocidental que a talentosa geração hollywoodiana dos anos 50 já sintomatizava.
Essa fissura, ilustrada de resto pelo périplo do protagonista de "Laranja Mecânica", de delinquente social a vítima da violência do Estado, encontra seu exemplo mais evidente na falha de Hal 9000, o supercomputador de "2001 - Uma Odisséia no Espaço".
Tornando-se homicida, Hal revela, tal como as criaturas de "A.I. - Inteligência Artificial" (roteiro que Kubrick legou à "sensibilidade" de Spielberg), o perigo de um divórcio entre homem e técnica.
Em "2001" (viagem cerebral e cósmica que resulta da soma IBM + LSD), a técnica se volta contra o homem, e, em "A.I.", é o homem que renega impiedosamente uma técnica tornada demasiado humana. Não por acaso, uma das maiores obsessões de Kubrick era o Holocausto judeu, fruto desta que foi a maior fissura do projeto racionalista da civilização ocidental e uma prova definitiva do perigo que é o homem não estar à altura da sua técnica.



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