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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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CINEMA

Longa de João Batista de Andrade com Marco Ricca retrata a periferia do Distrito Federal em clima de produções noir

Ficção e realidade lutam em "Rua 6 S/Nš"

Divulgação
Marco Ricca em cena de "Rua 6 S/Nš", filme em que interpreta Solano, um idealista que tenta encontrar a destinatária de uma herança


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"A teimosia é o que move o mundo", diz Solano (Marco Ricca), o protagonista de "Rua 6 S/ Nš". João Batista de Andrade, o autor do filme, sabe bem do que está falando: não fosse teimoso, já teria desistido do cinema há muito tempo.
Filmes censurados, projetos inacabados, ideais arruinados e reconhecimento tardio: não é à toa que os personagens dos filmes que conseguiu realizar até o fim nos parecem sempre algo frustrados e irreconciliáveis.
Difícil afirmar, mas, dos personagens de Andrade, Solano talvez seja o que lhe esteja mais próximo. Espécie de último dos idealistas, Solano é do tipo (obsessivo) que não abre mão facilmente de sua visão de mundo. Do tipo que tende a não se adaptar. Seus vizinhos o descrevem como um sujeito que "só não sobe na vida porque não quer".
Ao último dos idealistas será imposta a última das provas: duro, desempregado, com família para sustentar e o terceiro filho por nascer, Solano se vê com um bolo de dinheiro nas mãos e com a missão, legada por um moribundo, de encontrar a destinatária da herança.
Missão quase impossível: tudo o que sabe é que ela se chama Maíra e mora numa das inúmeras ruas 6 do Distrito Federal.
O mote serve de pretexto para ingressarmos na realidade da periferia brasiliense. A câmera, no encalço de Solano, registra e é registrada pelo olhar das pessoas nas ruas.
Nesse momento, Andrade não está muito longe de alcançar o desejado equilíbrio entre ficção e documentário, ou melhor, entre sua visão de mundo e a "visão do mundo" captada pela câmera.
Conformar a realidade aos seus ideais, combinar seu anseio de se aprofundar na realidade nacional com o de modificá-la foi sempre um problema para Andrade. Foi talvez o que o levou, em sua trajetória de cineasta, do documentário à ficção.
Se compararmos, por exemplo, os retratos de classe que Andrade traça dos imigrantes nordestinos no documentário "O Caso Norte" e na ficção "O Homem que Virou Suco", a mudança se faz evidente.
Se no primeiro filme o diretor partia da realidade (um crime reconstituído por atores não profissionais) para chegar a uma crítica social algo esquemática que aprisionava em seu discurso os personagens nordestinos tanto quanto o meio social retratado, no segundo esse esquematismo (de roteiro) se perdia durante as filmagens para dar lugar, no encalço da atuação de José Dumont, a uma visão mais positiva e complexa dos imigrantes nordestinos.
Ali Andrade conseguia, por uma espécie de comédia de costumes, aprofundar-se na realidade nacional sem abandonar a crítica social, amalgamando seu discurso à ficção.
Em seu novo filme, esse equilíbrio, buscado na confrontação entre o imaginário do protagonista (um escritor, como Andrade) e a realidade da periferia brasiliense, perde-se a partir do momento em que Andrade passa a investir (como em seu "A Próxima Vítima") no legado noir de sua ficção.
Os rastros de um desgastado imaginário de cinema noir (apesar de diurno, o filme reverencia o gênero) se impõem então sobre a realidade da periferia brasileira como a confirmar que o mundo está se tornando mesmo uma ficção ruim.


Rua 6 S/Nš
    
Direção: João Batista de Andrade
Produção: Brasil, 2003
Com: Marco Ricca, Christine Fernandes
Onde: Frei Caneca Unibanco Arteplex 4



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