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CINEMA
Longa de João Batista de Andrade com Marco Ricca retrata a periferia do Distrito Federal em clima de produções noir
Ficção e realidade lutam em "Rua 6 S/Nš"
Divulgação
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Marco Ricca em cena de "Rua 6 S/Nš", filme em que interpreta Solano, um idealista que tenta encontrar a destinatária de uma herança |
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
"A teimosia é o que move o
mundo", diz Solano (Marco
Ricca), o protagonista de "Rua 6
S/ Nš". João Batista de Andrade, o
autor do filme, sabe bem do que
está falando: não fosse teimoso, já
teria desistido do cinema há muito tempo.
Filmes censurados, projetos
inacabados, ideais arruinados e
reconhecimento tardio: não é à
toa que os personagens dos filmes
que conseguiu realizar até o fim
nos parecem sempre algo frustrados e irreconciliáveis.
Difícil afirmar, mas, dos personagens de Andrade, Solano talvez
seja o que lhe esteja mais próximo. Espécie de último dos idealistas, Solano é do tipo (obsessivo)
que não abre mão facilmente de
sua visão de mundo. Do tipo que
tende a não se adaptar. Seus vizinhos o descrevem como um sujeito que "só não sobe na vida porque não quer".
Ao último dos idealistas será
imposta a última das provas: duro, desempregado, com família
para sustentar e o terceiro filho
por nascer, Solano se vê com um
bolo de dinheiro nas mãos e com
a missão, legada por um moribundo, de encontrar a destinatária da herança.
Missão quase impossível: tudo o
que sabe é que ela se chama Maíra
e mora numa das inúmeras ruas 6
do Distrito Federal.
O mote serve de pretexto para
ingressarmos na realidade da periferia brasiliense. A câmera, no
encalço de Solano, registra e é registrada pelo olhar das pessoas
nas ruas.
Nesse momento, Andrade não
está muito longe de alcançar o desejado equilíbrio entre ficção e
documentário, ou melhor, entre
sua visão de mundo e a "visão do
mundo" captada pela câmera.
Conformar a realidade aos seus
ideais, combinar seu anseio de se
aprofundar na realidade nacional
com o de modificá-la foi sempre
um problema para Andrade. Foi
talvez o que o levou, em sua trajetória de cineasta, do documentário à ficção.
Se compararmos, por exemplo,
os retratos de classe que Andrade
traça dos imigrantes nordestinos
no documentário "O Caso Norte"
e na ficção "O Homem que Virou
Suco", a mudança se faz evidente.
Se no primeiro filme o diretor
partia da realidade (um crime reconstituído por atores não profissionais) para chegar a uma crítica
social algo esquemática que aprisionava em seu discurso os personagens nordestinos tanto quanto
o meio social retratado, no segundo esse esquematismo (de roteiro) se perdia durante as filmagens
para dar lugar, no encalço da
atuação de José Dumont, a uma
visão mais positiva e complexa
dos imigrantes nordestinos.
Ali Andrade conseguia, por
uma espécie de comédia de costumes, aprofundar-se na realidade
nacional sem abandonar a crítica
social, amalgamando seu discurso à ficção.
Em seu novo filme, esse equilíbrio, buscado na confrontação
entre o imaginário do protagonista (um escritor, como Andrade) e
a realidade da periferia brasiliense, perde-se a partir do momento
em que Andrade passa a investir
(como em seu "A Próxima Vítima") no legado noir de sua ficção.
Os rastros de um desgastado
imaginário de cinema noir (apesar de diurno, o filme reverencia o
gênero) se impõem então sobre a
realidade da periferia brasileira
como a confirmar que o mundo
está se tornando mesmo uma ficção ruim.
Rua 6 S/Nš
Direção: João Batista de Andrade
Produção: Brasil, 2003
Com: Marco Ricca, Christine Fernandes
Onde: Frei Caneca Unibanco Arteplex 4
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