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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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CINEMA

Diretor Abbas Kiarostami percorre ruas de Teerã e aborda os padrões de comportamento da sociedade iraniana

"Dez" atinge a troca justa entre homem e câmera

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O carro e a câmera. Para Abbas Kiarostami, esse dispositivo é algo mais do que a conjunção de duas máquinas, uma que produz movimento, outra que capta (apreende) esse movimento. Trata-se, para o cineasta, de uma pequena casa com grandes janelas em que a paisagem está sempre mudando, um lugar ideal para receber as pessoas sem compromisso e fazê-las se abrirem.
Em "Dez", Kiarostami não faz senão aperfeiçoar seu dispositivo para fazer seus convidados se sentirem ainda mais à vontade. A convivência de atores não profissionais com uma equipe de profissionais de cinema era um incômodo para ele. A falta de homogeneidade do grupo impedia que as relações se desenvolvessem mais naturalmente. Substituindo a equipe inteira por uma câmera digital, ele tenta promover encontros ainda mais espontâneos do que os que obtinha. Em nome dessa espontaneidade, chega mesmo a se fazer ausente da cena.
Uma mulher dirige o carro-dispositivo. Durante a primeira visita, a de seu filho, ela permanece o tempo todo fora de quadro. O espectador não sabe, mas Kiarostami está sentado no banco de trás, dando sua contribuição, por uma escuta, ao diálogo entre a mãe que quer se emancipar e o filho que a condena.
A personagem só ganha corpo depois que o garoto, voz de um certo rancor paternalista, sai de quadro. Da mesma forma, a condição da mulher iraniana, tema que Kiarostami, ao contrário dos discípulos, ainda hesitava abordar, só passa a constituir o centro do filme a partir do momento em que o autor se faz ausente. Para deixar mais à vontade as visitas femininas, uma prostituta e uma amiga da motorista, Abbas achou melhor sair do carro.
É como se Kiarostami ligasse seu dispositivo no piloto automático e conseguisse, nesse desprendimento, depurar seu método, reduzi-lo à essência sem revelar-lhe o mistério, essa insondável fronteira entre o documentário e a ficção. "É melhor que o diretor se retire do caminho do filme e deixe os personagens tomarem forma", dizia ele, em 1994.
Em "Dez", essa proposição é levada ao pé da letra. A presença do autor era o último obstáculo para a realização dessa espécie de utopia que é a esperança de Kiarostami em chegar à relação de troca justa entre o homem e a câmera. Como Walter Benjamin, o cineasta iraniano acredita que a câmera deixa de dar menos do que retira quando proporciona a uma pessoa comum a oportunidade de projetar a própria imagem.
Ao sair do carro-dispositivo, ele se torna um de nós, espectadores. Esse seu gesto de legar o filme ao espectador, de nos propor uma parceria e apelar para a nossa criatividade na hora de preencher as lacunas da narrativa, reconcilia as duas grandes vertentes do cinema moderno do pós-guerra.
Vertentes que a obra do iraniano, nova pedagogia da percepção, já retomava em seu percurso: da crença rosselliniana em "uma imagem justa" (que, em sua paciente apreensão do real, evita a manipulação do espectador) à bravata godardiana do "justo uma imagem" (vertente antiilusionista que, por um espectador ainda mais esclarecido e atuante, soma ao "cinema da realidade" a "realidade do cinema").

Dez
Ten


    
Produção: Irã/França, 2002
Direção: Abbas Kiarostami
Com: Mania Akbari e Amin Maher
Onde: em cartaz nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex 9 e Cinearte 1



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