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São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2003

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JEAN LOUIS STEUERMAN

Um poeta magro da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Certo tipo de arte parece um excesso de si. Justamente aquela arte mais magra, mais despojada e econômica, onde toda expressão parece demais, comparada ao que tem a dizer. O pianista Jean Louis Steuerman é um desses poetas magros, perpetuamente em busca da língua essencial da música, como se ouviu segunda-feira, em concerto de inauguração do novo piano Steinway da cidade, no Espaço Cultural Bank Boston.
Era um programa só de sonatas de Beethoven (1770-1827): "Patética" e "Ao Luar" na primeira parte; op. 109 e op. 110 na segunda. A própria sequência das peças já mostra o que pode ser a dieta de meios num compositor tão devotado ao sentido do que compõe. Nas variações da op. 109, ou na fuga da op. 110, até os temas vão se convertendo, aos poucos, em contornos fundamentais, idéias básicas que estão por trás de tudo -e que só têm a ganhar com o estilo desafetado de Steuerman.
O uso parcimonioso do pedal talvez seja o que há de mais característico no seu jeito de tocar; mas o resultado -um som menos cheio, com menos mistura e veludo- ainda é só um meio, não um fim. Articulação, toque, fraseado: tudo faz parte de uma noção muito pessoal da música, um ritmo interno das frases, que corresponde, nos detalhes, ao grande ritmo austero de cada peça inteira.
Os riscos são consideráveis, até porque não há onde se esconder. Se alguma escala tiver uma única semicolcheia menos do que perfeita, desaba. Mesmo nisso não há uma lição? A ruína pode ser mais expressiva do que a pilastra, embora com isso traia seu ideal.
Isso significa, também, que um pianista como ele nos obriga a uma espécie de dupla escuta: escutar o que ele toca e, ao mesmo tempo, o que ele não toca, a música a que a música dele quer chegar. Sua arte faz pensar num cineasta como Eric Rohmer, capaz de transformar o que há de mais prosaico na vida em filosofia e poesia; ou então num escritor como John Berger, cronista da experiência crua do mundo.
Alguém vai perguntar se o pianista sabe que está fazendo tanta coisa. A pergunta não seria legítima nunca (porque ninguém, afinal, controla sua própria arte); e soa menos legítima ainda nesse caso. Basta lembrar o modo como ele tocou o início da sonata "Ao Luar". Ninguém divide os planos por acaso como ele dividiu -tão diferente das multidões que tocam a op. 27/2.
Bis: duas "Bagatelas" op. 106, tocadas com disposição leve, gozando todo o engenho da forma. Ninguém escolhe essas peças por acaso; tocar as "Bagatelas" como bagatelas foi mais uma lição, despojada e, afinal, alegre, de um dos nossos maiores poetas da música.


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