São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008

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Crítica/cinema/"Luz Silenciosa"

Mexicano questiona fé e apropriação de idéias alheias

Diretor Carlos Reygadas conta história de homem dividido entre amor e traição

CRÍTICO DA FOLHA

Quando "Luz Silenciosa" começa, não é possível imaginar o quanto será estranho. É noite, vemos o céu. Um movimento nos traz à terra, onde se escuta os ruídos noturnos do campo. Aos poucos, presenciamos, em som e imagem, o amanhecer. Logo em seguida, somos conduzidos a uma casa, onde uma família reza, antes do café da manhã. Mais tarde saberemos que essa família faz parte de uma comunidade religiosa bastante fechada que vive no México e, sobretudo, que Johann, o pai, apaixonou-se por outra mulher que não a sua, Esther. Esse homem chora por dois motivos: por ter traído a mulher e por ter se afastado de Marianne, sua amada.
Ele pode sair para passear com a família e nessa ocasião comer tacos (é um dos raros momentos que sabemos estar no México). Ou pode consultar seu pai para saber se essa paixão é coisa de Deus ou do diabo. Obviamente não tem resposta.

Apropriação
Não por enquanto. A resposta virá no final, quando então saberemos que esse universo protestante, ascético, porém dotado de tolerância é o de Carl Theodor Dreyer, que Carlos Reygadas revisita. Boa parte do problema proposto por este filme gira em torno da legitimidade de apropriar-se tão ostensivamente do pensamento de um outro cineasta. Brian De Palma, um especialista na matéria, pinça ostensivamente cenas de outros cineastas (Hitchcock, sobretudo) para redistribui-las numa outra ficção.
A diferença é que De Palma não deixa nenhuma margem para que se imagine uma empreitada esteticista, enquanto Reygadas o faz. É como se, neste filme, o mexicano deixasse claro seu desejo de refazer o trajeto de Dreyer -numa outra ficção, claro, que não a de "A Palavra" (1955), mas chegando a um ponto semelhante.
No que diz respeito ao dilema de Johann, Deus parece silenciar. No que tange às mulheres, Esther e Marianne, Deus parece se manifestar. Mas terá se manifestado mais para Dreyer do que para Reygadas? Afinal, Dreyer conseguiu dar a ver, em "A Palavra", um milagre (temos a sensação de presenciá-lo, em todo caso), enquanto Reygadas nos mostra não mais do que um estado de catalepsia.
Ao final de "Luz Silenciosa", a câmera executará o movimento inverso ao do plano de abertura, partindo da paisagem diurna até levar o olhar até o céu, à altura, onde presumivelmente se encontra Deus. Um caso exacerbado de amor à simetria, aparentemente maior do que a Deus, que só serve para renovar a dúvida: "Luz Silenciosa" é um testemunho talentoso de fé ou um exercício laborioso de jogar poeira nos olhos? (INÁCIO ARAUJO)

LUZ SILENCIOSA
Produção:
México/França/Holanda, 2007
Direção: Carlos Reygadas
Com: Cornelio Wall Fehr, Miriem Toews e María Pankratz
Onde: Cinesesc; classificação: 14 anos
Avaliação: bom


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