São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOSTRA DE DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA

Subjetividade, paródia e polêmica dominam novo ciclo

SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Sonho de Núpcias", de Otavio Frias Filho, abre a quarta semana da mostra de dramaturgia com projeções da subjetividade. Com vários textos encenados, como "Don Juan", "Típico Romântico" e "Rancor", o dramaturgo retoma aqui a influência de Harold Pinter, visível nas outras peças, para relativizá-la com recursos de humor negro e estereótipos de literatura policial, sem deixar de evocar, em eco longínquo, os fluxos de consciência de Alaíde em "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues.
As camadas de tempo e espaço que o texto sobrepõe num mecanismo regressivo, feito da repetição de versões de uma mesma cena de estupro, são inseridas na noite de núpcias de Salete -Débora Duboc- e Reinaldo -Élcio Nogueira Seixas-, quando a irrupção da violência arbitrária, típica de Pinter, inviabiliza temporariamente o clichê dos noivos apaixonados num quarto de hotel na praia.
A precária consistência da realidade, as falhas de comunicação e a indecisão de tom, entre sério e risível, são transportadas pelo relato da personagem feminina, capaz de reconstituir experiências que nunca viveu, ao menos no plano naturalista que o texto, ao mesmo tempo, confirma e esvazia, como Pinter em "No Man's Land" e "Old Times".
Os vestígios do passado no presente sobrevivem na materialização desses fantasmas pessoais, que a recordação mais banal atualiza, lembrando, nesse aspecto, certas cenas de Sam Shepard, semelhantes também no contexto provisório, como é o caso do quarto de hotel.
Contrariando o movimento de instabilidades, o final conclusivo da peça soa artificial, pois retém as variações dessa dramaturgia de espasmos, que o diretor Maurício Paroni de Castro soube captar quando usou tapadeiras móveis para marcar as passagens de cena, além de sublinhar o feitio cinematográfico do roteiro.
Os atores, especialmente Débora Duboc e Renato Borghi -como Moraes, o detetive de hotel-, optam decididamente por uma linha de comicidade, que enfraquece a trama ambígua.
A intervenção incisiva do diretor reaparece na concepção cênica de William Pereira para "O Regulamento", de Samir Yazbek. As falas telegráficas do roteiro frágil, entre farsesco e absurdo, facilitaram a opção de Pereira por uma espécie de farsa pós-moderna, com direito a todos os clichês da encenação dos anos 80, incluindo gelo seco e telas maquinadas.
Nessa leitura paródica, a personagem Deus (Élcio Nogueira Seixas) se assemelha a um chefe mafioso que imita a dança de Chaplin com o globo terrestre em "O Grande Ditador", numa síntese de sentido reforçada pelas "tábuas" do regulamento divino.
Renato Borghi, o suicida que se recusa a viver depois da morte, contracena com Luah Guimarãez, a sensual secretária de Deus, valorizando o texto com expressões e gestos antológicos, dignos da melhor estirpe de comediantes brasileiros.
Último texto da noite, "Dentro", de Newton Moreno, continua a inquieta dramaturgia gay de "Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada". A peça explora a complexidade de relacionamentos e práticas homoeróticas na narrativa polêmica de um "fist-fucking", aproximando-se de Jean Genet em "Nossa Senhora das Flores", na combinação de primitivo e simbólico e na mistura de carne e alma que resultam numa síntese poética do comportamento marginal e da vida de riscos.
Nilton Bicudo escolhe o caminho da simplicidade na montagem, mas derrapa no início, para enfrentar o texto incômodo apenas no final, quando permite que os atores Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas sustentem o espectro turbulento da relação, numa auto-exposição corajosa e comovedora.


Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP

"Sonho de Núpcias", "O Regulamento" e "Dentro"
   
Quando: última apresentação, hoje, às 19h
Onde: Teatro Popular do Sesi (av. Paulista, 1.313, tel. 3284-3639)
Quanto: entrada franca


Texto Anterior: "Ruptura": Exposição discreta retorna às origens da abstração paulistana
Próximo Texto: Giro Gourmet: Na falta do inverno, mesas ao ar livre
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.