São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

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ÚLTIMO DIA
Cupom publicado hoje no caderno Brasil dá direito a entrada gratuita

"Imagens de Fato" traz raro senso do descontentamento

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Acho que o leitor vai concordar se eu disser que a Folha é um jornal que detesta o oficialismo. Uma reportagem da Folha pode ter muitos defeitos, mas dificilmente o da condescendência com as autoridades constituídas.
Tenho medo de que a Folha, ao evitar o oficialismo em relação aos governos, às vezes termine se tornando um pouco "oficialista dela mesma", ou seja, auto-referente em excesso.
Esperava certo "oficialismo Folha" nesta exposição. Ou seja, algo que não fosse muito além do previsto, do que seria obrigatório constar numa mostra do gênero e que corresponde aos momentos altos do jornal: os comícios das diretas, a morte de Tancredo, o impeachment de Collor.
Fora isso, haveria que seguir as imposições da cronologia, os fatos mais marcantes da história política brasileira: suicídio de Getúlio, golpe de 64, movimento estudantil de 68, as greves no ABC...
Acrescentem-se a Copa de 70, um pouco de Carnaval, uma ou outra novela de TV, algumas fotos de tragédias, mais futebol e Ayrton Senna. No fim, dava-se afinal conta do recado.
Claro que a exposição tinha de ter esses assuntos "obrigatórios". Mas o que vi no Masp foi muito além disso. Para mim, é como se a visão cronológica, convencional, da história recente do país tivesse sido virada do avesso.
As fotos mais estritamente políticas -Ulysses, Sarney, Castelo Branco- reduziram-se ao mínimo na mostra. Tive, mais do que nunca, a impressão de que uma fina cúpula de governantes de gravata, invariavelmente apresentados em fotos preto-e-branco, paira acima de um país gigantesco, convulso, violento e desgarrado.
Ultimamente a famosa "história oficial" do país -a que enaltece as grandezas do poder- vem sendo substituída por outra forma, igualmente falsa, de oficialismo: a que enaltece as qualidades inigualáveis de nosso povo, substância alquímica gerada pela mestiçagem, pelo encontro violento, sem dúvida, mas afinal excitante -e como!- do índio, do branco e do negro.
Não há nenhuma celebração nas fotos da mostra. Cenas e mais cenas de violência se destacam. O policial brutalizando um menino de rua. O menino de rua ameaçando com estilete uma motorista. Os mortos do Carandiru. A violência da seca no Nordeste e do desmatamento da Amazônia.
E, mais do que tudo, as imagens de trabalho infantil, logo no começo da exposição, a que não faltam legendas em tudo diversas do habitual tecnicismo jornalístico. Reproduzidas em grande escala, essas fotos como que só agora encontram a dimensão que de fato deveriam ter, para além das páginas do jornal.
A mostra chama a atenção por sua grande veemência crítica. Não se limita àquilo que, ao longo de 80 anos, sucedeu-se na política, nos costumes, nas artes, na economia, como que em obediência a uma crônica sem dúvida atribulada, mas aparentemente bem-sucedida de modernização.
Revela, com mais clareza do que nunca, tudo aquilo que há décadas, ou séculos, permanece imutável na sociedade brasileira: a escandalosa situação em que vive grande parte dos brasileiros e o constante, abafado e sangrento conflito que daí resulta. Longe de qualquer auto-referência, a Folha aqui está representada pelo que seu jornalismo tem de mais necessário e precioso: o espírito de inquietação crítica, a capacidade de revelar conflitos e contradições. Ou seja, o dom, cada vez mais raro, do descontentamento.

IMAGENS DE FATO - 80 ANOS DE FOLHA - exposição fotográfica com 315 imagens. Onde: Masp (av. Paulista, 1.578, Bela Vista, tel. 251-5644). Quando: hoje, das 11h às 18h (último dia). Quanto: R$ 10 (menores de 10 e maiores de 60 anos, grátis); a Folha publica hoje, no caderno Brasil, cupom que dá direito a entrada gratuita.

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