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ÚLTIMO DIA
Cupom publicado hoje no caderno Brasil dá direito a entrada gratuita
"Imagens de Fato" traz raro senso do descontentamento
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Acho que o leitor vai concordar se eu disser que a Folha é
um jornal que detesta o oficialismo. Uma reportagem da Folha
pode ter muitos defeitos, mas dificilmente o da condescendência
com as autoridades constituídas.
Tenho medo de que a Folha, ao
evitar o oficialismo em relação
aos governos, às vezes termine se
tornando um pouco "oficialista
dela mesma", ou seja, auto-referente em excesso.
Esperava certo "oficialismo Folha" nesta exposição. Ou seja, algo
que não fosse muito além do previsto, do que seria obrigatório
constar numa mostra do gênero e
que corresponde aos momentos
altos do jornal: os comícios das diretas, a morte de Tancredo, o impeachment de Collor.
Fora isso, haveria que seguir as
imposições da cronologia, os fatos mais marcantes da história
política brasileira: suicídio de Getúlio, golpe de 64, movimento estudantil de 68, as greves no ABC...
Acrescentem-se a Copa de 70,
um pouco de Carnaval, uma ou
outra novela de TV, algumas fotos
de tragédias, mais futebol e Ayrton Senna. No fim, dava-se afinal
conta do recado.
Claro que a exposição tinha de
ter esses assuntos "obrigatórios".
Mas o que vi no Masp foi muito
além disso. Para mim, é como se a
visão cronológica, convencional,
da história recente do país tivesse
sido virada do avesso.
As fotos mais estritamente políticas -Ulysses, Sarney, Castelo
Branco- reduziram-se ao mínimo na mostra. Tive, mais do que
nunca, a impressão de que uma fina cúpula de governantes de gravata, invariavelmente apresentados em fotos preto-e-branco, paira acima de um país gigantesco,
convulso, violento e desgarrado.
Ultimamente a famosa "história
oficial" do país -a que enaltece
as grandezas do poder- vem
sendo substituída por outra forma, igualmente falsa, de oficialismo: a que enaltece as qualidades
inigualáveis de nosso povo, substância alquímica gerada pela mestiçagem, pelo encontro violento,
sem dúvida, mas afinal excitante
-e como!- do índio, do branco
e do negro.
Não há nenhuma celebração
nas fotos da mostra. Cenas e mais
cenas de violência se destacam. O
policial brutalizando um menino
de rua. O menino de rua ameaçando com estilete uma motorista. Os mortos do Carandiru. A
violência da seca no Nordeste e do
desmatamento da Amazônia.
E, mais do que tudo, as imagens
de trabalho infantil, logo no começo da exposição, a que não faltam legendas em tudo diversas do
habitual tecnicismo jornalístico.
Reproduzidas em grande escala,
essas fotos como que só agora encontram a dimensão que de fato
deveriam ter, para além das páginas do jornal.
A mostra chama a atenção por
sua grande veemência crítica.
Não se limita àquilo que, ao longo
de 80 anos, sucedeu-se na política, nos costumes, nas artes, na
economia, como que em obediência a uma crônica sem dúvida
atribulada, mas aparentemente
bem-sucedida de modernização.
Revela, com mais clareza do que
nunca, tudo aquilo que há décadas, ou séculos, permanece imutável na sociedade brasileira: a escandalosa situação em que vive
grande parte dos brasileiros e o
constante, abafado e sangrento
conflito que daí resulta. Longe de
qualquer auto-referência, a Folha
aqui está representada pelo que
seu jornalismo tem de mais necessário e precioso: o espírito de
inquietação crítica, a capacidade
de revelar conflitos e contradições. Ou seja, o dom, cada vez
mais raro, do descontentamento.
IMAGENS DE FATO - 80 ANOS DE
FOLHA - exposição fotográfica com 315
imagens. Onde: Masp (av. Paulista,
1.578, Bela Vista, tel. 251-5644).
Quando: hoje, das 11h às 18h (último
dia). Quanto: R$ 10 (menores de 10 e
maiores de 60 anos, grátis); a Folha
publica hoje, no caderno Brasil, cupom
que dá direito a entrada gratuita.
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