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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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"OS SERTÕES - O HOMEM: PARTE 1"

Grupo Oficina ritualiza a miscigenação do Brasil

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

José Celso tem o dom de estabelecer nexos entre clássicos literários e a história atual do Brasil. Foi assim há quatro décadas, quando sua encenação de "Pequenos Burgueses", de Gorki, expôs as contradições da juventude brasileira sob a ditadura militar. Nos últimos anos, vem estendendo grandes painéis sobre o Brasil a partir de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha.
Depois de dançar a geografia nacional em "A Terra", ritualiza a miscigenação do brasileiro em "O Homem", no aguardo da "Luta", sobre a guerra de Canudos, terceira parte a ser apresentada, provavelmente em 2004.
Essa sequência intermediária, no entanto, é tão imprescindível que foi separada em duas etapas de quatro horas cada. Nessa primeira parte de "O Homem", não se trata simplesmente de estabelecer um paralelo histórico entre Canudos e o MST, por exemplo. Assim como Euclydes tenta distinguir as raízes da tragédia histórica na dinâmica da mistura de raças e no abandono na miséria da seca, o Brasil apresentado no Oficina surge desde a carta de Caminha como um país ciclicamente tomado por uma esperança messiânica em profetas e presidentes.
O brasileiro, "condenado à vida" em condições trágicas, procura sempre resgatar sua auto-estima para inventar uma nova civilização. Esse é o protagonista da peça, não Antônio Conselheiro.
José Celso, ao encarnar o profeta com a auto-ironia habitual, teve o cuidado de não se apresentar enquanto um salvador. Dá a ribalta ao coletivo, um elenco de 60 pessoas de todas as idades e tipos físicos, ostentando em cada rosto a miscigenação do mundo, cantando em uníssono a jovialidade de Renée Gumiel e a ancestralidade das crianças do Bexiga.
Há cada vez mais um texto coletivo, uma direção coletiva no grupo Uzyna Uzona. Mas disso não resulta uma dispersão no ritual, uma preguiça narcisista de se deixar ficar nessa rede que se estende de ponta a outra do teatro, unindo atores e platéia, concretizando a rede de desejos que formou o Brasil. Aqui, cada um sabe seu papel, o momento de interferir com seu depoimento.
Nenhum gesto, sobretudo, é aleatório. É como se o olhar antropológico de Euclydes, que descreve minuciosamente os rituais da seca, se estendesse aos atuais rituais urbanos do pregão da Bolsa, da cobrança de pênalti, e fosse expressa em repentes e happenings a angústia brasileira cotidiana. A platéia não é coagida a entrar nessa dinâmica, mas acolhida no seu desejo de participar, e o encantamento que resulta desse encontro faz a crítica se envergonhar da necessidade de seu distanciamento, em nome de um relato mais preciso após o calor da hora da peça.
É preciso assinalar, no entanto, que nesse clima ritualístico pequenos fatos de bastidor acabam tomando uma dimensão inesquecível. Como o trabalho de parto durante o ensaio geral da atriz Ana Guilhermina. Seu filho, batizado de Lírio, acabou se tornando o símbolo desse brasileiro que se inventa a cada dia. Por isso, caro Lírio, se por acaso você ler este texto daqui a 20 anos, saiba que a gente por aqui tem cumprido nosso papel. Durma tranquilo neste seu país do futuro.

Os Sertões - O Homem:
Parte 1


    
Texto: José Celso Martinez Corrêa, Tommy Pietra e Catherine Hirsch Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Oficina Uzyna Uzona
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 3106-2818)
Quando: sábado e domingo, às 18h; até 26/10
Quanto: R$ 20



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