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São Paulo, terça-feira, 25 de março de 2003

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MOSTRA ROBERT BRESSON

Diretor busca o cinema sem afetação

Divulgação
Cena de "Pickpocket", do cineasta francês Robert Bresson, cujos filmes estão em cartaz no Centro Cultural São Paulo a partir de hoje


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O cineasta francês Robert Bresson, cujos filmes são a atração da preciosa mostra em cartaz no Centro Cultural São Paulo, era, antes de tudo, um jansenista. Os jansenistas acreditavam na graça e na predestinação e tal é a perspectiva com que Bresson contemplava o destino de suas personagens -a vida, dizia ele, é feita de acaso e predestinação. Jansenismo é também sinônimo de rigor e austeridade, virtudes que fazem a exemplaridade da estética bressoniana.
Referindo-se ao estilo neutro de William Wyler, o crítico André Bazin cunhou, nos anos 40, o termo "jansenismo da mise en scène". Melhor seria aplicá-lo ao estilo bressoniano: não é senão Bresson quem faz coincidir o máximo de coeficiente cinematográfico com o mínimo de mise en scène.
O cineasta não gostava de efeitos nem afetações, queria despojar o cinema do ranço teatral oitocentista. Natural que não gostasse de atores. Bresson acreditava que o cinema era capaz de produzir emoções mais genuínas do que as exteriorizadas pelos virtuoses da representação. Não se produz emoção sem regularidade e comedimento, dizia. Por isso, substitui os atores por "modelos", autômatos que falam o mínimo e da forma mais neutra possível e agem de maneira automática.
Da interação entre a mecanicidade do "modelo" e a do meio, o cinematógrafo, surgiriam emoções verdadeiras. No fundo, manifestações daquilo que Bresson chamava de "o desconhecido de nós mesmos". Achava que era possível chegar à interioridade, esvaziando as aparências, como se pudesse neutralizar, pela austeridade (a desdramatização ) e pelo automatismo (a repetição), a vigência da exterioridade.
Esse momento de revelação nasceria da relação entre o ritmo (interno) do filme, dado pela interação quase nunca redundante entre som e imagem, e o ritmo (externo) de seus "modelos" autômatos. Tal teoria não foi pensada a posteriori: Bresson foi um dos raros autores de cinema a ter conseguido aplicar à perfeição conceitos elaborados de antemão.
Os autômatos bressonianos não são personagens, mas seres. Não são tipos "psicológicos", mas "da escolha". Há os que, escolhendo o mal pela primeira vez, perdem a possibilidade de outra escolha (o Yves de "L'Argent", por exemplo). Há os incertos ou indiferentes que transitam entre a inocência e o mal sem ter a consciência da escolha (o Michel de "Pickpocket" e sua incerteza de ser estético) e há os que escolheram Deus movidos pelo espírito do sacrifício e por uma fé próxima da paixão (Joana D'Arc). São jovens e foram escolhidos antes de escolherem (tal é a crença jansenista de Bresson na predestinação).
A escolha é o tema central de uma certa tradição do pensamento cristão. Em nome dela, a obra de Bresson esteve entre o cristianismo contraditório de Dostoiévski e o catolicismo inquebrantável de Georges Bernanos. Do primeiro fez adaptações diretas ("Une Femme Douce", por exemplo) e indiretas ("Pickpocket" é uma versão de "Crime e Castigo") e do segundo fez adaptações fiéis ("Mouchette").


MOSTRA ROBERT BRESSON. Quando: de hoje a 2/4. Onde: Centro Cultural São Paulo (rua Vergueiro, 1.000, tel. 3277-3611). Quanto: grátis. Hoje: "Les Dames du Bois de Boulogne" (14h), "Le Procès de Jeanne D'Arc" (16h), "Pickpocket" (18h), "Au Hasard Balthazar" (20h). Na internet: www.centrocultural.sp.gov.br


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