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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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CRÍTICA

Longa desmistifica universo dos concertos

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma nave espacial larga uma garrafa de Coca-Cola na superfície de um planeta. Dela, brotam formas de vida que vão se devorando e se sucedendo, em uma marcha evolutiva que vai culminar na civilização, sua tecnologia e suas contradições.
Sonorizada pelo ritmo constante e inflexível do "Bolero" de Ravel, a sequência acima constitui o clímax de "Música e Fantasia", cult de 1976 dirigido pelo italiano Bruno Bozzetto.
O filme apresenta evidentes diferenças com relação ao clássico americano "Fantasia", de Walt Disney. A única semelhança, na verdade, está no fato de seis itens do repertório tradicional das salas de concerto serem apresentadas em forma de desenho animado.
Filho de seu tempo, "Música e Fantasia" tem um tom de crítica social que hoje soa ainda mais incômodo, justamente por ser passível da acusação de "datado" e que certamente o afasta do igualmente "datado" otimismo idílico e proto-religioso do filme norte-americano de 1940. Sua distância da Disney parece ainda maior se comparado ao segundo "Fantasia". "Fantasia 2000" fez da técnica um fim em si mesmo; a poesia do original dos anos 40 parece ter ficado em algum lugar no meio do caminho, cedendo lugar à frieza pura e simples. Enquanto isso, o filme italiano, que parece tecnicamente precário mesmo pelos padrões da década de 70 (lembra muito "Yellow Submarine", dos anos 60, e as animações dos britânicos do Monty Python), é confessadamente emocional, como no episódio do gato solitário que devaneia entre os escombros de um edifício em ruínas na "Valsa Triste", de Sibelius.
Para além do tom geral esquerdista de "Música e Fantasia" (no "Pássaro de Fogo", de Stravinski, a serpente que devora o fruto proibido do Jardim do Éden é submetida aos suplícios da moderna sociedade de consumo), seria difícil imaginar, na Disney, ainda, o erotismo do "Prelúdio ao Entardecer de um Fauno", que, com etérea música de Debussy, retrata os patéticos esforços de um fauno envelhecido para ocultar sua decrepitude e conseguir os favores sexuais de ninfas cuja nudez é bastante evidente.
Herbert von Karajan é o maestro que rege a maior parte dos trechos musicais apresentados no filme, com leituras suntuosas e imponentes. Se "Fantasia", contudo, traz uma versão glamourizada do regente Leopold Stokowski, nada de parecido acontece no filme italiano.
Os desenhos são intercalados com filme em preto-e-branco, retratando uma orquestra de velhinhas que são tratadas como gado e tiranizadas por um maestro arrogante. Maurizio Nichetti (que, posteriormente, faria "Ladrões de Sabonete") faz o papel mudo do desenhista que é acorrentado numa masmorra e obrigado a trabalhar na animação do filme. É um tipo de humor que aplica a atores "reais" a mesma lógica surrealista dos desenhos animados.
Essa desmistificação dos rituais do universo aparentemente imaculado da música de concerto parece ser a mais positiva diferença entre "Música e Fantasia" e o filme norte-americano que o inspirou. Quem acompanha o dia-a-dia das orquestras sabe que ele está muito mais perto da absurda rigidez militarista satirizada por Bozzetto do que da imaculada perfeição idealizada por Disney.
Federico Fellini (1920-93) pode nunca ter ouvido falar no filme de Bozzetto, mas as semelhanças entre as atribulações hierárquico-musicais de "Música e Fantasia" e "Ensaio de Orquestra", criação felliniana de 78, são por demais evidentes para serem ignoradas. (IRINEU FRANCO PERPETUO)


Música e Fantasia
Allegro non Troppo
   
Produção: Itália, 1976
Direção: Bruno Bozzetto
Quando: a partir de hoje no Cinesesc



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