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CRÍTICA
Longa desmistifica universo dos concertos
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Uma nave espacial larga uma
garrafa de Coca-Cola na superfície de um planeta. Dela, brotam formas de vida que vão se devorando e se sucedendo, em uma
marcha evolutiva que vai culminar na civilização, sua tecnologia
e suas contradições.
Sonorizada pelo ritmo constante e inflexível do "Bolero" de Ravel, a sequência acima constitui o
clímax de "Música e Fantasia",
cult de 1976 dirigido pelo italiano
Bruno Bozzetto.
O filme apresenta evidentes diferenças com relação ao clássico
americano "Fantasia", de Walt
Disney. A única semelhança, na
verdade, está no fato de seis itens
do repertório tradicional das salas
de concerto serem apresentadas
em forma de desenho animado.
Filho de seu tempo, "Música e
Fantasia" tem um tom de crítica
social que hoje soa ainda mais incômodo, justamente por ser passível da acusação de "datado" e
que certamente o afasta do igualmente "datado" otimismo idílico
e proto-religioso do filme norte-americano de 1940. Sua distância
da Disney parece ainda maior se
comparado ao segundo "Fantasia". "Fantasia 2000" fez da técnica um fim em si mesmo; a poesia
do original dos anos 40 parece ter
ficado em algum lugar no meio do
caminho, cedendo lugar à frieza
pura e simples. Enquanto isso, o
filme italiano, que parece tecnicamente precário mesmo pelos padrões da década de 70 (lembra
muito "Yellow Submarine", dos
anos 60, e as animações dos britânicos do Monty Python), é confessadamente emocional, como
no episódio do gato solitário que
devaneia entre os escombros de
um edifício em ruínas na "Valsa
Triste", de Sibelius.
Para além do tom geral esquerdista de "Música e Fantasia" (no
"Pássaro de Fogo", de Stravinski,
a serpente que devora o fruto
proibido do Jardim do Éden é
submetida aos suplícios da moderna sociedade de consumo), seria difícil imaginar, na Disney,
ainda, o erotismo do "Prelúdio ao
Entardecer de um Fauno", que,
com etérea música de Debussy,
retrata os patéticos esforços de
um fauno envelhecido para ocultar sua decrepitude e conseguir os
favores sexuais de ninfas cuja nudez é bastante evidente.
Herbert von Karajan é o maestro que rege a maior parte dos trechos musicais apresentados no
filme, com leituras suntuosas e
imponentes. Se "Fantasia", contudo, traz uma versão glamourizada do regente Leopold Stokowski, nada de parecido acontece no filme italiano.
Os desenhos são intercalados
com filme em preto-e-branco, retratando uma orquestra de velhinhas que são tratadas como gado
e tiranizadas por um maestro arrogante. Maurizio Nichetti (que,
posteriormente, faria "Ladrões de
Sabonete") faz o papel mudo do
desenhista que é acorrentado numa masmorra e obrigado a trabalhar na animação do filme. É um
tipo de humor que aplica a atores
"reais" a mesma lógica surrealista
dos desenhos animados.
Essa desmistificação dos rituais
do universo aparentemente imaculado da música de concerto parece ser a mais positiva diferença
entre "Música e Fantasia" e o filme norte-americano que o inspirou. Quem acompanha o dia-a-dia das orquestras sabe que ele está muito mais perto da absurda rigidez militarista satirizada por
Bozzetto do que da imaculada
perfeição idealizada por Disney.
Federico Fellini (1920-93) pode
nunca ter ouvido falar no filme de
Bozzetto, mas as semelhanças entre as atribulações hierárquico-musicais de "Música e Fantasia" e
"Ensaio de Orquestra", criação felliniana de 78, são por demais evidentes para serem ignoradas.
(IRINEU FRANCO PERPETUO)
Música e Fantasia
Allegro non Troppo
Produção: Itália, 1976
Direção: Bruno Bozzetto
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
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