São Paulo, terça-feira, 27 de março de 2007

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Kieslowski mostra seu mundo real em festival

É Tudo Verdade faz retrospectiva com 17 documentários do diretor polonês

São filmes menos conhecidos, curtas e médias feitos dos anos 60 aos 80 e que dialogam com as ficções do autor do "Decálogo"


SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Um rígido guarda-noturno está prestes a chorar apenas porque um grupo de crianças, instigadas pela professora, lhe dedica alguma atenção. Um ex-soldado cego, ferido em combate, diz à câmera que só deseja "paz, paz a todos". Um rapaz de 19 anos leva bronca da mãe, pelo telefone da maternidade, porque não sabe lhe informar o peso e a altura da filha recém-nascida.
Os instantes descritos acima ocupam breves momentos de "O Ponto de Vista de um Guarda Noturno" (1977), "Eu Era um Soldado" (1970) e "Primeiro Amor" (1974), respectivamente. Mas, como viria também a ocorrer nos filmes de ficção de Krzystof Kieslowski (1941-1996), eles são epifânicos: um rosto na tela, durante poucos segundos, e emerge uma compreensão superior do personagem, de seus dramas e do que representa viver.
Uma coisa (e, de todo modo, nada simples) é obter esse resultado com roteiro, atores e condições técnicas planejadas para isso. Outra, a exigir método rigoroso e paciência quase infinita, é aguardar que esses instantes se manifestem diante da câmera em situações cotidianas do "mundo real", como se observa nos 17 títulos da retrospectiva dedicada ao cineasta polonês pelo É Tudo Verdade - 12º Festival Internacional de Documentários.
De "O Escritório" e "O Bonde" (ambos 1966) até "Estação" (1980), o conjunto cobre o período menos conhecido na carreira do diretor de "Decálogo" (1988) e a Trilogia das Cores (1993-94), que vai de seus tempos de estudante, na Escola de Cinema de Lodz, por onde também passaram Andrzej Wajda e Roman Polanski, à fase de transição, na segunda metade dos anos 70, em que já experimentava a ficção, e com ótimos resultados, como em "Amador" (1979) -não por acaso, sobre um documentarista acidental.

Natureza humana
Além dos curtas e médias-metragens selecionados pelo festival, Kieslowski assinou outros seis documentários em sua primeira década e meia como cineasta.
O recorte da retrospectiva é mais do que suficiente, no entanto, para identificar constantes e variações: as primeiras, fruto de princípios que se estendem por toda a sua obra; as segundas, típicas de quem procurava explorar a maior diversidade possível de abordagens e de estruturas.
Evidencia-se em todos os filmes, por exemplo, o seu esforço em voltar-se para os meandros da natureza humana, mesmo quando as pessoas estão inseridas em grandes engrenagens que supostamente seriam o foco do documentário (como em "A Fábrica", de 1971, ou "Curriculum Vitae", de 1975) ou quando o filme é "contra" o personagem e tudo o que ele representa (caso único, e extraordinário, de "O Ponto de Vista de um Guarda-Noturno").
Estabelecida essa coordenada geral, para cada tema se busca a maneira mais adequada de explorá-lo, como se realizar um novo documentário constituísse sempre o desafio de fazer o mesmo, mas de outro jeito.


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