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Kieslowski mostra seu mundo real em festival
É Tudo Verdade faz retrospectiva com 17 documentários do diretor polonês
São filmes menos conhecidos, curtas e médias feitos dos anos 60 aos 80 e que dialogam com as ficções do autor do "Decálogo"
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Um rígido guarda-noturno
está prestes a chorar apenas
porque um grupo de crianças,
instigadas pela professora, lhe
dedica alguma atenção. Um ex-soldado cego, ferido em combate, diz à câmera que só deseja
"paz, paz a todos". Um rapaz de
19 anos leva bronca da mãe, pelo telefone da maternidade,
porque não sabe lhe informar o
peso e a altura da filha recém-nascida.
Os instantes descritos acima
ocupam breves momentos de
"O Ponto de Vista de um Guarda Noturno" (1977), "Eu Era
um Soldado" (1970) e "Primeiro Amor" (1974), respectivamente. Mas, como viria também a ocorrer nos filmes de ficção de Krzystof Kieslowski
(1941-1996), eles são epifânicos: um rosto na tela, durante
poucos segundos, e emerge
uma compreensão superior do
personagem, de seus dramas e
do que representa viver.
Uma coisa (e, de todo modo,
nada simples) é obter esse resultado com roteiro, atores e
condições técnicas planejadas
para isso. Outra, a exigir método rigoroso e paciência quase
infinita, é aguardar que esses
instantes se manifestem diante
da câmera em situações cotidianas do "mundo real", como
se observa nos 17 títulos da retrospectiva dedicada ao cineasta polonês pelo É Tudo Verdade - 12º Festival Internacional
de Documentários.
De "O Escritório" e "O Bonde" (ambos 1966) até "Estação"
(1980), o conjunto cobre o período menos conhecido na carreira do diretor de "Decálogo"
(1988) e a Trilogia das Cores
(1993-94), que vai de seus tempos de estudante, na Escola de
Cinema de Lodz, por onde também passaram Andrzej Wajda e
Roman Polanski, à fase de transição, na segunda metade dos
anos 70, em que já experimentava a ficção, e com ótimos resultados, como em "Amador"
(1979) -não por acaso, sobre
um documentarista acidental.
Natureza humana
Além dos curtas e médias-metragens selecionados pelo
festival, Kieslowski assinou outros seis documentários em sua
primeira década e meia como
cineasta.
O recorte da retrospectiva é
mais do que suficiente, no entanto, para identificar constantes e variações: as primeiras,
fruto de princípios que se estendem por toda a sua obra; as
segundas, típicas de quem procurava explorar a maior diversidade possível de abordagens e
de estruturas.
Evidencia-se em todos os filmes, por exemplo, o seu esforço
em voltar-se para os meandros
da natureza humana, mesmo
quando as pessoas estão inseridas em grandes engrenagens
que supostamente seriam o foco do documentário (como em
"A Fábrica", de 1971, ou "Curriculum Vitae", de 1975) ou
quando o filme é "contra" o
personagem e tudo o que ele representa (caso único, e extraordinário, de "O Ponto de Vista de
um Guarda-Noturno").
Estabelecida essa coordenada geral, para cada tema se busca a maneira mais adequada de
explorá-lo, como se realizar um
novo documentário constituísse sempre o desafio de fazer o
mesmo, mas de outro jeito.
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