São Paulo, quarta-feira, 27 de maio de 2009

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Crítica

Teatro

Peça com Sergio Britto inova textos de Beckett

Monólogos demonstram recusa em cumprir plenamente ações prescritas

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Encenar textos de dramaturgos consagrados implica sempre desafiar leituras já consolidadas. No caso de Samuel Beckett esse desafio é maior porque, sendo ele próprio um encenador de seus textos, criou-se um verdadeiro cânone, a partir do que os novos espetáculos, quando ousam apresentar alguma variação, derivam minimamente.
A encenação de Isabel Cavalcanti das peças "A Última Gravação de Krapp" e de "Ato sem Palavras 1" enfrenta o peso dessa tradição com desassombro e permite-se pequenas ações divergentes para arejar o ambiente beckettiano.
Favorecendo essa disposição de um diálogo aberto com o autor e seu legado, há a parceria com um ator ímpar, Sergio Britto, que condiciona muitas das opções da encenadora.
Em "A Última Gravação de Krapp", parte da rotina de ações e movimentos do personagem indicada nas rubricas originais é suprimida em benefício de um foco mais nítido no andar lento e ritmado, ou na limpeza dos dentes, depois de mastigar bananas, com os próprios dedos. Assim, se é verdade que os movimentos prescritos por Beckett são tão relevantes quanto as falas do personagem, é possível desvendar novos sentidos para eles com transgressões mínimas.
Em "A Última Gravação de Krapp", Sergio Britto aparece despojado de truques, apto a encarnar o velho homem que passou a vida a registrar em rolos de fita suas memórias.
É um personagem sem ilusões, que ao ouvir sua voz quando era bem mais moço se reconhece um cretino. Ele está entre a amargura de uma consciência aguda de seu fracasso como homem e a melancolia sincera de um afeto perdido. Não é um personagem fácil de vestir. Há nele um tênue equilíbrio entre o melodramático e o ridículo, e Britto, sem incorrer em nenhum desses extremos, o mantém verossímil em sua humanidade demasiada.

Adaptação
No caso de "Ato sem Palavras 1", peça que demanda uma atuação com tônus corporal intensificado -foi escrita para um dançarino-, as soluções de Cavalcanti incorporaram as restrições de um ator octogenário. Aos sons do apito que sinaliza uma autoridade invisível, Britto não é arremessado das coxias como prevê o texto, e mesmo sua rotina de ações, estimulada pelos atos de tantalização a que é submetido, nunca é atlética e bem acabada, mas intencionalmente reflete a vontade e as disposições enfraquecidas de quem já viveu tudo.
O cenário de Fernando Melo da Costa, com tonalidades claras e detalhes como o da graciosa palmeira que negaceia sua sombra, reforça o contraste entre a figuração proposta por Beckett, em um de seus primeiros voos puramente cênicos, e a disponibilidade de Britto em enfrentá-la. Em sua recusa de cumprir plenamente as ações prescritas, o espetáculo não só inova, como revela aspectos datados do texto, o que Beckett assimilaria. Afinal, ele próprio nunca deixou de modificar seus textos e de aperfeiçoá-los quando pode encená-los.


A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP/ATO SEM PALAVRAS 1

Quando: sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h30; até 14/6
Onde: Sesc Santana (av. Luiz Dumont Villares, 579, tel. 2971-8700)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicada a menores de 16 anos
Avaliação: bom




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