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Crítica
Teatro
Peça com Sergio Britto inova textos de Beckett
Monólogos demonstram recusa em cumprir plenamente ações prescritas
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Encenar textos de dramaturgos consagrados
implica sempre desafiar leituras já consolidadas. No
caso de Samuel Beckett esse
desafio é maior porque, sendo
ele próprio um encenador de
seus textos, criou-se um verdadeiro cânone, a partir do que os
novos espetáculos, quando ousam apresentar alguma variação, derivam minimamente.
A encenação de Isabel Cavalcanti das peças "A Última Gravação de Krapp" e de "Ato sem
Palavras 1" enfrenta o peso dessa tradição com desassombro e
permite-se pequenas ações divergentes para arejar o ambiente beckettiano.
Favorecendo essa disposição
de um diálogo aberto com o autor e seu legado, há a parceria
com um ator ímpar, Sergio
Britto, que condiciona muitas
das opções da encenadora.
Em "A Última Gravação de
Krapp", parte da rotina de
ações e movimentos do personagem indicada nas rubricas
originais é suprimida em benefício de um foco mais nítido no
andar lento e ritmado, ou na
limpeza dos dentes, depois de
mastigar bananas, com os próprios dedos. Assim, se é verdade que os movimentos prescritos por Beckett são tão relevantes quanto as falas do personagem, é possível desvendar novos sentidos para eles com
transgressões mínimas.
Em "A Última Gravação de
Krapp", Sergio Britto aparece
despojado de truques, apto a
encarnar o velho homem que
passou a vida a registrar em rolos de fita suas memórias.
É um personagem sem ilusões, que ao ouvir sua voz quando era bem mais moço se reconhece um cretino. Ele está entre a amargura de uma consciência aguda de seu fracasso
como homem e a melancolia
sincera de um afeto perdido.
Não é um personagem fácil de
vestir. Há nele um tênue equilíbrio entre o melodramático e o
ridículo, e Britto, sem incorrer
em nenhum desses extremos, o
mantém verossímil em sua humanidade demasiada.
Adaptação
No caso de "Ato sem Palavras
1", peça que demanda uma
atuação com tônus corporal intensificado -foi escrita para
um dançarino-, as soluções de
Cavalcanti incorporaram as
restrições de um ator octogenário. Aos sons do apito que sinaliza uma autoridade invisível,
Britto não é arremessado das
coxias como prevê o texto, e
mesmo sua rotina de ações, estimulada pelos atos de tantalização a que é submetido, nunca
é atlética e bem acabada, mas
intencionalmente reflete a
vontade e as disposições enfraquecidas de quem já viveu tudo.
O cenário de Fernando Melo
da Costa, com tonalidades claras e detalhes como o da graciosa palmeira que negaceia sua
sombra, reforça o contraste entre a figuração proposta por
Beckett, em um de seus primeiros voos puramente cênicos, e a
disponibilidade de Britto em
enfrentá-la. Em sua recusa de
cumprir plenamente as ações
prescritas, o espetáculo não só
inova, como revela aspectos datados do texto, o que Beckett
assimilaria. Afinal, ele próprio
nunca deixou de modificar seus
textos e de aperfeiçoá-los
quando pode encená-los.
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE
KRAPP/ATO SEM PALAVRAS 1
Quando: sex. e sáb., às 21h, e dom., às
19h30; até 14/6
Onde: Sesc Santana (av. Luiz Dumont
Villares, 579, tel. 2971-8700)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicada a menores
de 16 anos
Avaliação: bom
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