São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

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Crítica/erudito

Nelson Freire nas alturas, Dezsö Ránki no alto e a Osesp subindo a ladeira

Tuca Vieira/Folha Imagem
O pianista Nelson Freire (à dir.) sob regência de John Neschling


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

No fim do segundo movimento do "Concerto nš 4" para piano e orquestra de Rachmaninov (1873-1943) o tema principal retorna harmonizado lindamente com grandes acordes, e o piano toca uma seqüência de frases arpejadas, na região média-aguda. Nesse ponto, Nelson Freire fez uma coisa extraordinária: um crescendo-decrescendo elástico, sutilíssimo, uma coisa viva que se exibia aos nossos ouvidos como uma raridade da flora musical.
Esse foi só um detalhe da miríade de pequenas e grandes façanhas que o pianista mineiro desfiou na última segunda-feira, na Sala São Paulo. A Osesp embarca sábado para uma turnê européia de 16 concertos, começando em Barcelona e passando por Zurique, Viena e Varsóvia, entre outras cidades.
O programa de anteontem era igual ao de alguns da turnê, incluindo o último, em Paris. Com ou sem turnê, Nelson Freire representa um fenômeno à parte na cena musical. O documentário de João Moreira Salles (2003) teve grande papel nisso; assim como a sua inclusão na prestigiosa série de discos "Great Pianists of the 20th Century". Nelson hoje é adorado pelas platéias; tornou-se uma entidade, para não dizer uma divindade brasileira.
Nem por isso mudou o comportamento discreto, nem muito menos a dedicação intensíssima na hora de tocar. Até mesmo no previsível bis, a "Melodia de Orfeu e Eurídice", de Gluck (arranjada por Sgambati), que Guiomar Novaes gostava de interpretar e ele sempre repete em São Paulo, Nelson fez milagre, calando com delicadeza -e incríveis "rubatos"- as 1.600 almas que um minuto antes o aplaudiam freneticamente, depois do Rachmaninov.
Na semana passada, o outro solista convidado da Osesp, o húngaro Dezsö Ránki, também fez prodígios no "Concerto nš 2" de Béla Bartók (1881-1945).
Mas a música - um dos mais aterradores e mais espetaculares trabalhos do período entreguerras-, o pianista (que já esteve por aqui muitas vezes) e os prodígios -digitais, cerebrais, espirituais- eram todos de outra natureza. Regida por John Neschling, quinta-feira, a orquestra ainda não tinha entrado completamente na música, e Ránki, ótimo pianista como é, não foi capaz de incandescer sozinho o ambiente ao redor.
Verdade seja dita: a Osesp precisa crescer muito até sábado, para fazer jus às expectativas que ela mesma criou. Tanto na quinta quanto na segunda, ouviu-se grande música na sala, mas também se ouviu muita coisa sem fibra e a temperatura, em geral, foi morna. Sem falar em erros, como a calamitosa entrada do Rachmaninov. Nesses dias, está tocando como uma excelente orquestra média; vários graus abaixo da média das orquestras excelentes.
Tocar a "Primeira Sinfonia" de Tchaikovsky (1840-1893), ou tocar Respighi (1879-1936), dois compositores que a orquestra também vai gravar, não deve ser a maior inspiração. Mas a viagem é uma inspiração por si; Bartók é uma loucura, e tocar com Nelson Freire é sempre a maior e melhor viagem.

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