São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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TEATRO/CRÍTICA

Grupo XIX de teatro resgata história cotidiana em peça em cartaz na antiga vila operária Maria Zélia, no Belenzinho

"Hygiene" escancara a falência da cidadania

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena do espetáculo "Hygiene", do grupo XIX de teatro em cartaz em vila operária


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Antiga utopia operária, hoje patrimônio público, a Vila Maria Zélia, no Belenzinho, mistura ruínas esquecidas e casas reformadas. Nada melhor para sediar um grupo que se propõe a resgatar a história cotidiana pelo teatro. Com despojamento e vocação para a pesquisa, o grupo XIX desenvolveu uma linguagem própria, combinando a audácia do happening com uma interpretação intimista, acolhendo e instigando um público pouco familiarizado com o teatro convencional. Assim como em "Hysteria", a ênfase de "Hygiene" é a condição de vida das mulheres na passagem do século 19 para o 20. Neste espetáculo, no entanto, o foco está na "modernização" proposta pela vacinação contra a febre amarela e a eliminação dos cortiços.
É imensa a pertinência do tema, já que ainda hoje há uma forte tendência em se punir a miséria como uma falta de bons costumes, um tumor a ser extirpado, evitando-se compreender suas causas históricas e políticas. Para alertar contra essa perversa interpretação do conceito de cidadania, o espetáculo conta com o carisma e a força de Janaína Leite, de beleza klimtiana, e a camaleônica Sara Antunes, que apesar de sua pouca idade e altura, mistura dor e alegria como uma grande atriz.
Juliana Sanches, intensa e delicada, está, no entanto, limitada por seu personagem. A "noiva amarela", que alinhava a peça através de uma procissão pelas ruas da vila, acaba acumulando metáforas demais e ficaria hermética se não fossem as explicações do elenco masculino. Este, por sua vez, cede ao declamativo, e o grupo deixa escapar a naturalidade, seu maior trunfo em "Hysteria". Apoiado na brilhante direção de arte de Renato Bolelli, o diretor Luis Fernando Marques, coordenando uma profusão de idéias e referências, acaba não aproveitando como poderia o verdadeiro protagonista do espetáculo, a própria Vila Maria Zélia, que, com sua história tão fecunda, não se deixa reduzir a locação de uma outra época.
De qualquer modo, é perturbador sair do espetáculo e ser devolvido à tarde de domingo paulistana, na qual o "Mexe-Mexe Bailes" anuncia Odair José, ladeando templos e hotéis suspeitos, com o espectro do edifício São Vito ainda próximo demais do século 19. Ocupando um patrimônio público em ruínas e expondo uma ferida que não fecha, o grupo XIX de teatro torna visível a falência da cidadania.


Hygiene
   
Texto: grupo XIX de teatro
Direção: Luiz Fernando Marques
Com: grupo XIX de teatro
Quando: sáb. e dom., às 16h; até 4/12
Onde: Vila Maria Zélia (r. Cachoeira, esq. c/ r. dos Prazeres, Belenzinho, tel. 8283-6269)
Quanto: contribuição sugerida de R$ 10 e R$ 20


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