São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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HERANÇA MILITAR

"Batiam, tinha pau-de-arara, choques, colocavam em cima de latinhas", relata Adaílton Bezerra sobre a ação do Exército contra a guerrilha

Enfermeiro reanimava presos sob tortura

DOS ENVIADOS ESPECIAIS A MARABÁ

O maranhense Adaílton Vieira Bezerra, 50, mudou-se para Marabá (PA) ainda menino. Alistou-se no 52º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva) em 74. Tornou-se "enfermeiro" do Exército. Durante a Guerrilha do Araguaia, presenciou sessões de tortura em bases instaladas na selva e no quartel de Marabá. Medicou uma guerrilheira antes do fuzilamento.
Abaixo, a entrevista que concedeu à Folha.
(JOSIAS DE SOUZA E ANDRÉA MICHAEL)

 

Folha - O sr. foi à frente de batalha?
Vieira Bezerra
- Fui enviado a Xambioá. Fiquei mais de 60 dias.

Folha - Qual era a sua atribuição?
Vieira Bezerra
- Eu era enfermeiro do Exército.

Folha - Em Xambioá o sr. trabalhava à paisana?
Vieira Bezerra
- Sim.

Folha - Trocou de nome?
Vieira Bezerra
- Me chamavam de Paulo.

Folha - Atendia que tipo de pacientes?
Vieira Bezerra
- Os nossos e os prisioneiros. Cheguei a atender uma guerrilheira.

Folha - Que guerrilheira?
Vieira Bezerra
- A Walquíria. Foi pega à noite, por camponeses. Tinha um valor de cinco mil cruzeiros na época pela captura de cada um. Ela ficou muito tempo sozinha na mata. Chegou debilitada na base. Deram banho nela, trocaram de roupa e conduziram à enfermaria, para uma desintoxicação. O médico passou a receita e eu executei a injeção.

Folha - O que continha a injeção?
Vieira Bezerra
-Tinha glicose, Xantinon, complexo B, vitamina C e Acrosil. Era um coquetel completo.

Folha - Depois ela foi interrogada?
Vieira Bezerra
- Foi interrogada pelo doutor Hugo Abreu. Foi o último comandante da base de Xambioá.

Folha - O sr. acompanhou o interrogatório?
Vieira Bezerra
- Acompanhei. Ela ignorava completamente as perguntas.

Folha - Houve violência?
Vieira Bezerra
- Com ela não. Foi interrogada várias vezes. Tarde da noite, na hora em que o Hugo Abreu saiu, estávamos eu e um outro companheiro armado. Ela virou para nós e falou as únicas palavras que pronunciou durante todo o tempo: "Me soltem e entreguem essa arma que acabo com meio mundo". No dia seguinte, por volta das 15h, liberaram todo mundo para a cidade, inclusive eu. Só ficaram os oficiais, chamados de doutor. Chegaram também os comandantes de outras bases, como Bacaba e Casa Azul. Fiquei sabendo que eles formaram uma meia-lua, colocaram ela no centro, e um carrasco, de costas para a meia-lua, atirou nela. Foi executada por volta das 17h.

Folha - O sr. viu?
Vieira Bezerra
- Não. Eu soube no dia seguinte. Um colega nosso tinha visto. O médico, que estava presente, me contou. Ela recebeu mais dois tiros. No segundo, caiu de joelho. No terceiro, caiu de cara no chão.

Folha - O sr. presenciou outros depoimentos?
Vieira Bezerra
- Sim.

Folha - Na condição de enfermeiro?
Vieira Bezerra
- Exato.

Folha - Houve emprego de violência?
Vieira Bezerra
- Houve muito. Até me admirei de a Walquíria não ter sido maltratada antes de ser executada.

Folha - Que tipo de violência?
Vieira Bezerra
- Tortura. Batiam, colocavam no pau-de-arara, colocavam em cima de uma latinha, davam choques na língua.

Folha - De onde vinha a energia para os choques?
Vieira Bezerra
- Tínhamos uma bateria, usada nos rádios de comunicação. Puxavam dois fios dela e triscavam na língua. O choque dava disenteria imediata.

Folha - O que mais?
Vieira Bezerra
- Eles preparavam a lama de fezes e urina. Colocava-se uma tábua, duas latinhas em cima, a pessoa ficava em cima e tinha um fio para segurar. O fio tinha trechos desencapados. Não tinha onde pôr a mão que não pegasse num pedaço descascado. Aquele cabo recebia corrente elétrica vinda da bateria ou do gerador.

Folha - O sr. prestava assistência aos torturados?
Vieira Bezerra
- Sim. Muitos entravam em pânico. Era preciso acalmar. Aí eram medicados. Essa era a minha função, socorrer. O contrário do que eles faziam.

Folha - Quem era o comandante da base?
Vieira Bezerra
- O Hugo Abreu.

Folha - Que outros depoimentos o sr. acompanhou?
Vieira Bezerra
- Lembro de um camponês de nome Natal. Era acusado de colaborar com guerrilheiros. Apanhou muito. Eles torturavam e, quando era caso demorado, mandavam para a Bacaba, centro de todo tipo de tortura. Não vi mais esse moço.

Folha - Que tipo de medicamento o sr. ministrava após a tortura?
Vieira Bezerra
- Era um tipo de Diazepan, não lembro o nome exato.

Folha - Depois de medicada, a pessoa era torturada novamente?
Vieira Bezerra
- Era. Quando a pessoa tinha medo de falar, ela continuava apanhando, continuava a tortura, até ficar escornada, vazando sangue pela boca, pelo ouvido.

Folha - A Walquíria foi enterrada onde?
Vieira Bezerra
- Não assisti ela ser enterrada. Vimos a cova dela em Xambioá, do lado da enfermaria, ao lado da cova do Osvaldão.

Folha - Os corpos ainda estão lá?
Vieira Bezerra
- É muito difícil. O comentário que houve é que depois, na operação limpeza, eles tinham resgatado esses ossos. Mas ninguém tem certeza. Nós demos baixa e não acompanhamos. O buraco da Walquíria já estava cavado quando nós fomos para a cidade. O comentário depois é que eles forraram com cal, enrolaram o corpo com material de pára-quedas e jogaram terra em cima. O pára-quedas servia para juntar todos os ossos, para facilitar o resgate. Esse era o comentário interno, sigiloso.

Folha - O sr. presenciou depoimentos no quartel do 52º BIS?
Vieira Bezerra
- Sim. Estava de plantão num dia em que o oficial de dia anunciou que tinha uma missão em Tucuruí. Prenderam fazendeiros, juiz de direito, prefeito, delegado, promotor de Justiça, vereadores...

Folha - Qual a razão das prisões?
Vieira Bezerra
- Diziam que os juízes e fazendeiros integravam uma máfia na região. Os políticos foram acusados de fazer parte. Todos foram torturados. Levaram muito choque na língua. Jogavam água no chão e davam choque. Apanharam com palmatória. Punham o dedo no centro de uma mesa redonda, apanhavam e rodavam em volta cantando. Se cantassem, apanhavam, se não cantassem, apanhavam do mesmo jeito.

Folha - Que outras torturas havia?
Vieira Bezerra
- Muitos tipos de tortura, muitos, muitos, muitos. Tinha telefone, dois tapas no ouvido. Sangrava pela boca, pelo nariz.

Folha - O sr. era chamado a atender os interrogados?
Vieira Bezerra
- Quando a pessoa era torturada demais, que a pressão dela abaixava, eu colocava numa certa posição, que retorna a pressão. Segurava atrás da nuca e a pessoa pressionava para cima.

Folha - Depois de reanimada, a pessoa voltava a ser interrogada?
Vieira Bezerra
- Não podia ser mais do que duas horas depois. E nova sessão de tortura e nós trabalhávamos de novo para reanimar.

Folha - O sr. se julga credor de uma indenização do Exército. Por quê?
Vieira Bezerra
- Perdi o tímpano direito depois de um treinamento de tiro. O médico do quartel, tenente Valter, quando foi lavar o meu ouvido, terminou de estourar o tímpano. Estive no Hospital Geral de Belém. O médico tinha deixado de receber uma promoção por causa do meu depoimento no hospital de Belém. Queria que eu assinasse um documento dizendo que tinha me enganado no que tinha falado sobre a lavagem do ouvido. Ameaçou me pôr para fora do Exército. Eu fiquei com medo e concordei. Ele disse: "Já que você vai assinar, não vou te pôr para fora. Você quer ir para a guerrilha do Araguaia?" Fui para Xambioá por livre e espontânea pressão, para salvar a pele. Foi uma chantagem. Ele recebeu a promoção e eu fiquei prejudicado. Quero uma reparação, uma aposentadoria.


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