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HERANÇA MILITAR
"Batiam, tinha pau-de-arara, choques, colocavam em cima de latinhas", relata Adaílton Bezerra sobre a ação do Exército contra a guerrilha
Enfermeiro reanimava presos sob tortura
DOS ENVIADOS ESPECIAIS A MARABÁ
O maranhense Adaílton Vieira
Bezerra, 50, mudou-se para Marabá (PA) ainda menino. Alistou-se no 52º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva) em 74. Tornou-se
"enfermeiro" do Exército. Durante a Guerrilha do Araguaia, presenciou sessões de tortura em bases instaladas na selva e no quartel
de Marabá. Medicou uma guerrilheira antes do fuzilamento.
Abaixo, a entrevista que concedeu à Folha.
(JOSIAS DE SOUZA E ANDRÉA MICHAEL)
Folha - O sr. foi à frente de batalha?
Vieira Bezerra - Fui enviado a
Xambioá. Fiquei mais de 60 dias.
Folha - Qual era a sua atribuição?
Vieira Bezerra - Eu era enfermeiro do Exército.
Folha - Em Xambioá o sr. trabalhava à paisana?
Vieira Bezerra - Sim.
Folha - Trocou de nome?
Vieira Bezerra - Me chamavam
de Paulo.
Folha - Atendia que tipo de pacientes?
Vieira Bezerra - Os nossos e os
prisioneiros. Cheguei a atender
uma guerrilheira.
Folha - Que guerrilheira?
Vieira Bezerra - A Walquíria. Foi
pega à noite, por camponeses. Tinha um valor de cinco mil cruzeiros na época pela captura de cada
um. Ela ficou muito tempo sozinha na mata. Chegou debilitada
na base. Deram banho nela, trocaram de roupa e conduziram à enfermaria, para uma desintoxicação. O médico passou a receita e
eu executei a injeção.
Folha - O que continha a injeção?
Vieira Bezerra -Tinha glicose,
Xantinon, complexo B, vitamina
C e Acrosil. Era um coquetel completo.
Folha - Depois ela foi interrogada?
Vieira Bezerra - Foi interrogada
pelo doutor Hugo Abreu. Foi o último comandante da base de
Xambioá.
Folha - O sr. acompanhou o interrogatório?
Vieira Bezerra - Acompanhei.
Ela ignorava completamente as
perguntas.
Folha - Houve violência?
Vieira Bezerra - Com ela não. Foi
interrogada várias vezes. Tarde da
noite, na hora em que o Hugo
Abreu saiu, estávamos eu e um
outro companheiro armado. Ela
virou para nós e falou as únicas
palavras que pronunciou durante
todo o tempo: "Me soltem e entreguem essa arma que acabo com
meio mundo". No dia seguinte,
por volta das 15h, liberaram todo
mundo para a cidade, inclusive
eu. Só ficaram os oficiais, chamados de doutor. Chegaram também os comandantes de outras
bases, como Bacaba e Casa Azul.
Fiquei sabendo que eles formaram uma meia-lua, colocaram ela
no centro, e um carrasco, de costas para a meia-lua, atirou nela.
Foi executada por volta das 17h.
Folha - O sr. viu?
Vieira Bezerra - Não. Eu soube
no dia seguinte. Um colega nosso
tinha visto. O médico, que estava
presente, me contou. Ela recebeu
mais dois tiros. No segundo, caiu
de joelho. No terceiro, caiu de cara no chão.
Folha - O sr. presenciou outros
depoimentos?
Vieira Bezerra - Sim.
Folha - Na condição de enfermeiro?
Vieira Bezerra - Exato.
Folha - Houve emprego de violência?
Vieira Bezerra - Houve muito.
Até me admirei de a Walquíria
não ter sido maltratada antes de
ser executada.
Folha - Que tipo de violência?
Vieira Bezerra - Tortura. Batiam,
colocavam no pau-de-arara, colocavam em cima de uma latinha,
davam choques na língua.
Folha - De onde vinha a energia
para os choques?
Vieira Bezerra - Tínhamos uma
bateria, usada nos rádios de comunicação. Puxavam dois fios
dela e triscavam na língua. O choque dava disenteria imediata.
Folha - O que mais?
Vieira Bezerra - Eles preparavam
a lama de fezes e urina. Colocava-se uma tábua, duas latinhas em cima, a pessoa ficava em cima e tinha um fio para segurar. O fio tinha trechos desencapados. Não
tinha onde pôr a mão que não pegasse num pedaço descascado.
Aquele cabo recebia corrente elétrica vinda da bateria ou do gerador.
Folha - O sr. prestava assistência
aos torturados?
Vieira Bezerra - Sim. Muitos entravam em pânico. Era preciso
acalmar. Aí eram medicados. Essa
era a minha função, socorrer. O
contrário do que eles faziam.
Folha - Quem era o comandante
da base?
Vieira Bezerra - O Hugo Abreu.
Folha - Que outros depoimentos o
sr. acompanhou?
Vieira Bezerra - Lembro de um
camponês de nome Natal. Era
acusado de colaborar com guerrilheiros. Apanhou muito. Eles torturavam e, quando era caso demorado, mandavam para a Bacaba, centro de todo tipo de tortura.
Não vi mais esse moço.
Folha - Que tipo de medicamento
o sr. ministrava após a tortura?
Vieira Bezerra - Era um tipo de
Diazepan, não lembro o nome
exato.
Folha - Depois de medicada, a
pessoa era torturada novamente?
Vieira Bezerra - Era. Quando a
pessoa tinha medo de falar, ela
continuava apanhando, continuava a tortura, até ficar escornada, vazando sangue pela boca, pelo ouvido.
Folha - A Walquíria foi enterrada
onde?
Vieira Bezerra - Não assisti ela
ser enterrada. Vimos a cova dela
em Xambioá, do lado da enfermaria, ao lado da cova do Osvaldão.
Folha - Os corpos ainda estão lá?
Vieira Bezerra - É muito difícil. O
comentário que houve é que depois, na operação limpeza, eles tinham resgatado esses ossos. Mas
ninguém tem certeza. Nós demos
baixa e não acompanhamos. O
buraco da Walquíria já estava cavado quando nós fomos para a cidade. O comentário depois é que
eles forraram com cal, enrolaram
o corpo com material de pára-quedas e jogaram terra em cima.
O pára-quedas servia para juntar
todos os ossos, para facilitar o resgate. Esse era o comentário interno, sigiloso.
Folha - O sr. presenciou depoimentos no quartel do 52º BIS?
Vieira Bezerra - Sim. Estava de
plantão num dia em que o oficial
de dia anunciou que tinha uma
missão em Tucuruí. Prenderam
fazendeiros, juiz de direito, prefeito, delegado, promotor de Justiça,
vereadores...
Folha - Qual a razão das prisões?
Vieira Bezerra - Diziam que os
juízes e fazendeiros integravam
uma máfia na região. Os políticos
foram acusados de fazer parte.
Todos foram torturados. Levaram muito choque na língua. Jogavam água no chão e davam
choque. Apanharam com palmatória. Punham o dedo no centro
de uma mesa redonda, apanhavam e rodavam em volta cantando. Se cantassem, apanhavam, se
não cantassem, apanhavam do
mesmo jeito.
Folha - Que outras torturas havia?
Vieira Bezerra - Muitos tipos de
tortura, muitos, muitos, muitos.
Tinha telefone, dois tapas no ouvido. Sangrava pela boca, pelo nariz.
Folha - O sr. era chamado a atender os interrogados?
Vieira Bezerra - Quando a pessoa era torturada demais, que a
pressão dela abaixava, eu colocava numa certa posição, que retorna a pressão. Segurava atrás da
nuca e a pessoa pressionava para
cima.
Folha - Depois de reanimada, a
pessoa voltava a ser interrogada?
Vieira Bezerra - Não podia ser
mais do que duas horas depois. E
nova sessão de tortura e nós trabalhávamos de novo para reanimar.
Folha - O sr. se julga credor de
uma indenização do Exército. Por
quê?
Vieira Bezerra - Perdi o tímpano
direito depois de um treinamento
de tiro. O médico do quartel, tenente Valter, quando foi lavar o
meu ouvido, terminou de estourar o tímpano. Estive no Hospital
Geral de Belém. O médico tinha
deixado de receber uma promoção por causa do meu depoimento no hospital de Belém. Queria
que eu assinasse um documento
dizendo que tinha me enganado
no que tinha falado sobre a lavagem do ouvido. Ameaçou me pôr
para fora do Exército. Eu fiquei
com medo e concordei. Ele disse:
"Já que você vai assinar, não vou te
pôr para fora. Você quer ir para a
guerrilha do Araguaia?" Fui para
Xambioá por livre e espontânea
pressão, para salvar a pele. Foi
uma chantagem. Ele recebeu a
promoção e eu fiquei prejudicado. Quero uma reparação, uma
aposentadoria.
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