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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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ELIO GASPARI

Bush cria a Roma da mentira

As forças armadas americanas estão sob a suspeita de terem armado uma das maiores manipulações jornalísticas dos últimos tempos. Todo mundo lembra da soldado resgatada num hospital de Nassiria, no Iraque. A tropa parecia saída de filme e a operação passou na TV, com aquelas imagens esverdeadas que acrescentam drama e sugerem veracidade. (O vídeo, de cinco minutos, foi gravado, editado e distribuído pelo Pentágono.)
No dia 23 de março, a lourinha Jessica Lynch, de 19 anos, viu-se capturada depois de enfrentar o inimigo, gastando toda sua munição. Foi ferida a bala e faca. Foi espancada no hospital. Na madrugada do dia 2 de abril o comando militar americano reuniu a imprensa para contar uma grande história. A mesma que o secretário Donald Rumsfeld contara ao presidente Bush por telefone. Num lance heróico, tropas especiais invadiram o hospital, tiraram Jessica da cama e puseram-na num helicóptero. Uma bandeira americana ajudava a cobri-la, numa maca. O general Vincent Brooks, porta-voz das tropas americanas disse assim: "Alguns bravos puseram suas vidas em risco para que isso acontecesse. Eles são fiéis ao nosso credo de não abandonar o camarada".
Deu no "The New York Times" que seu pai esperava notícias de Jessica na varanda de sua casa, no alto de uma colina, olhando para o gado no pasto. A casa dos Lynch fica num vale, não tem pasto, muito menos gado. Era tudo mentira do famoso Jayson Blair, o repórter que inventava suas histórias. A história de Blair pertence à crônica das fraudes jornalísticas e poucas vezes um cascateiro teve tamanha notoriedade.
O resgate da soldado Lynch foi uma cascata mais desonesta, produzida pelo Pentágono e distribuída aos otários. A maior potência do mundo está sob a influência de mistificadores vulgares. Uma coisa dessas acontecendo em Washington é muito mais perigosa que Sadam Hussein em Bagdá.
A soldado Lynch não levou tiro algum nem foi espancada. Se resistiu ao fogo inimigo, não se sabe. É possível que tenha quebrado as duas pernas e um braço quando o caminhão em que estava foi emboscado e capotou. Pior: seu resgate foi uma encenação.
Há duas semanas a BBC mostrou um documentário demonstrando que a invasão hospital de Nassiria pelas tropas americanas foi desnecessária. O exército iraquiano havia abandonado a cidade na véspera. Ela recebia um tratamento melhor do que os EUA dão aos seus prisioneiros em Guantânamo. Deram-lhe três litros de sangue, doados pela equipe de funcionários do hospital. Os médicos que tratavam da jovem colocaram-na numa ambulância para levá-la às linhas americanas. A ambulância foi recebida a bala, Mandaram recados. Nada.
Um dos médicos iraquianos que cuidou de Jessica diz que a invasão do hospital foi coisa de Hollywood, tipo "Sinbad, o Marujo", ou Sylvester Stallone. Uma equipe da Associated Press conferiu e informa: 20 médicos e enfermeiras do hospital de Nassiria afirmam que o espetáculo era desnecessário. Em nenhum momento o Pentágono informou que aquelas cenas esverdeadas ocorriam num hospital onde não havia tropa nem resistência.
Quando a história começou a cheirar mal, surgiram informações de que Jessica está com amnésia. Falso, diz sua família. O pai e os irmãos se recusam a falar sobre a captura e resgate da moça. Ela apenas manda dizer que "Jessica nunca quis ser transformada em heroina".
Pode-se argumentar que um toque de teatro nos noticiários de combates faz parte do negócio. As duas fotografias mais famosas da Segunda Guerra foram encenadas. A bandeira de Iwo Jima foi hasteada para que Joe Rosenthal pudesse fotografá-la. Os fuzileiros estavam numa boa, atrás das linhas americanas. Com a foice martelo no topo do Reichstag foi pior. A bandeira, costurada por um alfaiate em Moscou, andava na mala do fotografo Eugeni Khaldei. Mais: ele teve que apagar o segundo relógio do pulso do soldado, expropriado a algum alemão. Durante décadas acreditou-se que o soldado era um russo, Descobriu-se que isso era coisa do marechal Stalin. O rapaz da fotografia é um ucraniano que ficou calado para salvar a própria pele.
Ainda não esfriou o resgate da soldado Lynch e descobre-se que o tal bunker do Saddam, bombardeado com 40 mísseis Tomahawk (US$ 30 milhões) na primeira hora da guerra, nem bunker era. A patuléia soube que a CIA tinha localizado o subterrâneo onde estavam Saddam, seus filhos e a cúpula do governo.
Bush, pessoalmente, autorizou esse bombardeio. Agora sabe-se que não localizaram coisa nenhuma. As casas destruídas pelas bombas eram apenas casas.
Por falar nisso, estão vivas as seguintes personalidades mortas: Saddam Hussein, Osama Bin Laden, Mulá Omar (aquele da venda no olho).

O professor e o livro de Tiradentes

Aconteceu uma bonita história no eixo Nova York-Brasília-Ouro Preto. Na manhã da quinta-feira, dia 15, entrou no Palácio do Planalto um professor inglês. Era Kenneth Maxwell, autor de "A devassa da devassa", estudo clássico da Inconfidência Mineira. Na condição de diretor do programa latino-americano do Council on Foreign Relations, ia conversar com Lula. (Ele foi o herético que enlouqueceu a banca americana quando escreveu no "Financial Times" que o melhor para Wall Street seria a vitória de Lula no primeiro turno.) Os dois conversaram hora e meia.
Maxwell saiu do palácio, tomou um avião para Belo Horizonte e de lá, um carro para Ouro Preto. No dia seguinte o professor voltou aos seus tempos de pesquisador. Trancou-se no arquivo do Museu da Inconfidência e passou horas examinando uma peça que perseguia havia anos. Um livrinho do tamanho de uma edição de bolso, intitulado "Coleção das leis constitutivas das colônias inglesas confederadas sob a denominação de Estados Unidos da América do Norte". A edição é de 1778, e é possível que tenha sido paga por Benjamin Franklin para fazer propaganda dos radicais das 13 colônias. O exemplar que Maxwell consultou, com as páginas desordenadas, pertenceu ao Tiradentes e foi confiscado pela polícia em sua casa, depois que o prenderam.
As pesquisadoras manuseiam o livro com luvas. Ele está bastante comido pelo cupim, mas sobreviveu a tudo, inclusive a quatro restaurações medíocres e a um cidadão que o levou para Santa Catarina.
Maxwell está coordenando a primeira edição comentada da obra, em português. Ao contrário do que se diz com frequência, ela não tem o texto da Constituição Americana, que é de 1787, mas os projetos e rascunhos da fase anterior. Coisa mais subversiva que Luciana Genro.
A edição será uma boa oportunidade para se relembrar que, quando os mineiros foram pedir ajuda a Thomas Jefferson, embaixador americano em Paris, ele achou boa a idéia de ajudar os brasileiros, sobretudo porque poderiam comprar bacalhau aos americanos.

CPI morta
Morreu a CPI da Privatização das Teles. Sua convocação vinha do ano passado e juntou 185 assinaturas. Com a ajuda dos poderes de dissuasão do presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha (PT-SP), e com o óbvio estímulo da bancada petista, 102 parlamentares retiraram suas assinaturas do requerimento que pedia a instalação da CPI. Com isso, ela vai ao arquivo.
Não foi má idéia. Do jeito que vai a vida parlamentar e com a experiência de outras CPIs, ela haveria de se transformar numa central de coi$a$ feia$ e incertezas no mercado financeiro. Não melhoraria a qualidade de uma só ligação telefônica.

Tele surda
Uma boa notícia: quem for maltratado pelo sistema batraquial de atendimento aos clientes da Telefônica ou de suas similares pode procurar a Anatel. Dá certo.
Uma vítima penou um mês, dez telefonemas, três supervisores, dois protocolos, três promessas não cumpridas e uma cobrança indevida. Viveu no mundo descerebrado dos serviços 0800, repetiu umas 20 vezes o seu caso e nada conseguiu.
Ligou para a Anatel, deu o número de seu protocolo e quatro dias depois foi procurado pela Telefônica. Uma atendente da empresa tentou cobrar-lhe uma taxa de habilitação. Ele respondeu que a exigência é ilegal. Bingo, não se falou mais no assunto. Entre a hora que ele botou a Anatel no circuito e a hora em que a Telefônica fez o seu serviço, passaram-se quatro luas.
As empresas de telefonia fixa estão numa campanha para conseguir mais tarifas, menos impostos e, se Lula ajudar, um dinheirinho da Viúva (via Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o FUST). Deveriam ser encaminhados ao serviço de atendimento aos clientes de suas empresas.

Amor ao Rio
Se os arquitetos e o Ministério da Cultura se mexerem, o presidente da Infraero, Carlos Wilson, abre um concurso público para o projeto do novo terminal do aeroporto Santos Dumont. O atual, construído em 1937, é uma jóia da arquitetura brasileira e o projeto de Marcelo e Milton Roberto foi selecionado num concurso. É considerado um dos mais bonitos do mundo.
Se deixarem pra lá, dentro de seis meses a Infraero abrirá uma licitação para a construção de um projeto já existente, preparado na empresa de engenharia Figueiredo Ferraz. No ano passado a Infraero anunciou que esse projeto seria mostrado ao público, mas isso não aconteceu.
Os cariocas que se protejam. Há uma in$inuante mobilização da privataria em cima do pedaço de orla que vai do fim do Museu de Arte Moderna à praça 15. Se bobearem, enfiam alí marinas, prédios e até hotel. Em 1993 o banco Bozano chegou a projetar uma vila financeira. Diante do estrilo do arquiteto Italo Campofiorito, o IPHAN confirmou o congelamento da área tombada do Aterro. Infelizmente ela não inclui a vizinhança do aeroporto.


Entrevista

César Benjamin
(49 anos, militante petista de 1980 até 1995, dono da Editora Contraponto.)

- O senhor escreveu para a revista "Caros Amigos" um artigo intitulado "Dialética da empulhação", no qual mostra que a linguagem do governo petista está corrompida. Como lhe ocorreu isso?
- Em quase seis meses de governo, o PT não apresentou uma só idéia boa e nova. Ouvindo os seus porta-vozes, sobretudo o Lula, fui-me dando conta de que havia uma ligação entre a falta de idéias e um monólogo corrompido. A primeira empulhação está na criação de um interlocutor imaginário a quem se responde com raro bom senso. Por exemplo: "Você não pode mudar tudo da noite para o dia". Ou "o Brasil não pode se isolar do mundo". E "não sejamos lenientes com a inflação". Você já encontrou alguém querendo inflação e isolamento, além de pretender mudar tudo num só dia? Esse tipo de imbecil não existe. É empulhação de quem não quer discutir o seu projeto de mudanças, de ação internacional e de controle da inflação. Como o interlocutor é imbecil, finge-se que há um debate, para manter um monólogo. A dialética da empulhação e o discurso de Lula têm outra marca. Apresentam analogias como se fossem argumentos.

- Dê alguns exemplos.
- Lula já disse que "ir ao dentista é inevitável". Isso justifica os juros de 26,5% que levaram a uma contração do PIB nos seus primeiros três meses de governo. Como "Boeing não dá cavalo de pau", você radicaliza a política de estagnação econômica. É uma retórica do realismo fantástico, delícia da turma do "Casseta & Planeta". De tanto usar analogias, Lula ficou preso numa. Na terça-feira ele disse que a economia brasileira está como uma bicicleta ergométrica. Você pedala e não sai do lugar. De duas uma, ou Lula descobriu que bicicleta ergométrica não sai do lugar, ou está descobrindo que sua política econômica arruina a economia nacional. Sua fala está pontilhada de parábolas e platitudes. Ouça: "Apressado come cru". É um daqueles provérbios populares que não querem dizer nada. Ou talvez queira dizer que você deve deixar para amanhã o que pode fazer hoje. A propaganda do PT diz que até 1962 as mulheres precisavam de licença do marido para trabalhar. Como isso mudou, a reforma da Previdência é necessária. Acham que estão num país de débeis mentais.

- Essa opção pela empulhação traz riscos ou são só palavras?
- Traz riscos. Impõe um debate autoritário, irresponsável. Veja o caso da reação ao desempenho de Fernando Henrique Cardoso. Há três discursos. O da continuidade virtuosa, e seu oposto, o da "herança maldita". Lula recorre a ambos. Finalmente, há a retórica do compromisso com o futuro. ("Não vamos nos prender ao passado.") Um dia o José Genoino defendia o superávit primário de 7% no sítio do "Primeira Leitura" e noutro sítio, da militância, reclamava da "herança". Temos que procurar o que há atrás desses discursos. O núcleo da agenda de Lula é de direita. Essa política não se sustenta até o fim do ano. Para prazer do sistema financeiro, o Estado foi colocado em vida vegetativa. Ele se limita a pagar salários e juros. Uma taxa de desemprego acima de 15% sempre traz graves problemas sociais. Havia a esperança de um governo petista. Agora não há mais isso. No segundo semestre o desemprego estará em 23 ou 24%. Eu não me iludo com pesquisas de opinião. Vem aí um coice.



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