São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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EUA restringiram acordo nuclear brasileiro

Pressão americana está registrada em pelo menos 410 telegramas do serviço diplomático do país datados de 1975 e agora divulgados

Governo americano tinha conhecimento dos acertos com a Alemanha 6 meses antes da assinatura do contrato e exigiu mudanças

RUBENS VALENTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Telegramas secretos do Departamento de Estado americano agora liberados à consulta pública expõem a estratégia dos EUA para restringir os termos do acordo nuclear Brasil-Alemanha -marco da política no setor, cuja assinatura completou 32 anos na quinta-feira.
"Os EUA, em várias ocasiões, expressaram profunda preocupação com o precedente e a extensão da venda [ao Brasil] e insta a Alemanha a assegurar que o acordo inclua controles os mais apertados possíveis sobre essas sensíveis exportações", afirmou o então secretário de Estado, Henry Kissinger, num telegrama disseminado poucos dias antes antes do fechamento do acordo.
"Os EUA tinham proposto que todos os acordos pendentes que incluíssem essas instalações fossem adiados até que os fornecedores pudessem discutir conjuntamente a adoção de políticas comuns", acrescenta um telegrama de março.
A pressão americana, conhecida na década de 70, ganhou contorno documental em pelo menos 410 telegramas que tratam do acordo, de um total de 6.000 enviados ou recebidos pelo serviço diplomático americano no Brasil em 1975. Até o ano passado, haviam sido liberados os papéis relativos a 1973 e 1974. Agora estão na internet os telegramas de 1975 -um total de 11 mil documentos com menções ao Brasil, disponíveis em http://foia.state.gov/ SearchColls/Search.asp.
Os documentos indicam que os americanos usavam fontes da própria Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) e da empresa americana Westinghouse, que em 1971 fora contratada pelo Brasil para construir e fornecer combustível para a usina Angra 1.
A empresa conseguiu antecipar para os americanos em 3 de janeiro, seis meses antes da assinatura do acordo, a informação de que Brasil e Alemanha haviam firmado um "protocolo" em novembro de 1974, na ditadura sob a presidência de Ernesto Geisel (1908-1996).
A informação vazada pela empresa descia aos detalhes: o acordo envolveria uma planta para enriquecimento de urânio, que viria a ser o nó da questão. O domínio do ciclo completo do processo poderia dar ao Brasil condições de produzir a sua bomba atômica.
Kissinger acionou várias embaixadas ao redor do mundo, incluindo a do Brasil, para pedir "inquirições discretas" para confirmar o dado. "Se a informação que estamos recebendo da Westinghouse for correta, então parece que a Alemanha está preparada para tornar disponível o ciclo completo da tecnologia ao Brasil com o objetivo de obter vantagem comercial sobre os EUA", escreveu.
Seis dias depois desse aviso, os diplomatas de Bonn, na Alemanha, responderam que, de fato, havia um diálogo em andamento, "mas nada foi assinado". Os americanos engoliram o desmentido alemão. A confirmação, contudo, não demorou a chegar. Além de pressionar o Brasil, os EUA procuraram o governo alemão.
O jornalista Elio Gaspari, autor de quatro livros sobre a ditadura, disse ser surpreendente o reconhecimento de que os EUA, ainda em janeiro, já detivessem informações sobre possível enriquecimento de urânio no acordo bilateral.
"Por esses telegramas fica muito claro que os EUA influíram e moldaram muitas das características do acordo. Já se imaginava isso, mas agora se vê que a influência foi maior", disse o chefe de gabinete da presidência da Eletronuclear, o engenheiro naval nuclear Leonam dos Santos Guimarães.
Num telegrama de março, Kissinger expôs em detalhes as exigências que os americanos passaram a fazer à Alemanha. Os EUA queriam que o país, "caso mantenha sua intenção de promover a venda ao Brasil", continuasse tendo forte controle sobre a usina de enriquecimento, inclusive do ponto de vista "político".
"Os EUA sugerem os elementos adicionais a serem incluídos no corpo do acordo: a) providências para o contínuo envolvimento do fornecedor [Alemanha] no programa de reprocessamento e enriquecimento, para incluir domínio, voz nas decisões políticas e presença técnica-operacional", diz o documento.
Segundo Guimarães, as empresas criadas pelo Brasil para executar o acordo tinham empresas alemãs na participação societária, e técnicos alemães passaram a morar no Brasil.
O mesmo telegrama resume: "Os EUA estão preocupados com o fornecimento da capacidade de operar o ciclo completo do combustível (enriquecimento e reprocessamento) inerente à venda proposta pela Alemanha ao Brasil".
As mensagens de Kissinger ressaltam, por várias vezes, a disputa comercial em andamento. "Nós também desejamos nos movimentar no sentido de um novo acordo de cooperação bilateral, mas o arranjo Brasil-Alemanha complicou nosso objetivo", diz um telegrama, de março.
Meses depois, os EUA demonstram receio de que a Alemanha entenda as críticas como parte de uma disputa entre grandes empresas nucleares. O secretário de Estado americano, então, orienta: "A embaixada [de Brasília] deveria levar em alto nível político as preocupações americanas a respeito do Brasil, consistente com objetivos mútuos de não proliferação [de armas atômicas], e assegurar ao governo alemão que o governo americano não está buscando obter vantagem comercial. A respeito desse ponto, a embaixada poderia reiterar que os EUA não têm planos para providenciar ao Brasil equipamento ou tecnologia de enriquecimento e reprocessamento [de urânio]".
Indicado para falar sobre o assunto pela embaixada americana em Brasília, o porta-voz da CIA (central de inteligência americana) em Washington, George Little, disse que não comenta "fontes e métodos" do trabalho de inteligência. Little disse que não analisou especificamente os documentos sobre o acordo nuclear, e por isso não faria comentários. Sobre documentos liberados pelo governo americano, Little disse que "eles falam por si e devem ser avaliados por historiadores e outros pesquisadores".


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