São Paulo, segunda-feira, 01 de outubro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/HALEH ESFANDIARI

Detida por três meses em Teerã sem acusação, a acadêmica iraniana que vive nos EUA fala do futuro de seu país

Mudança virá de dentro, diz ex-prisioneira

Presa por mais de três meses em Evin (Teerã), enfrentando interrogatórios diários, mas sem acusação formal, a iraniana Haleh Esfandiari, 67, conta como foi sua vida nesse período. Diretora do programa para o Oriente Médio do prestigioso Wilson Center, em Washington, ela ouvia de seus interrogadores que era uma espiã a serviço do governo norte-americano, enviada ao país para organizar uma "revolução de veludo". A acadêmica fala ainda da polêmica visita do presidente Mahmoud Ahmadinejad à Universidade Columbia, em Nova York, na semana passada.

SÉRGIO DÁVILA

Da janela de sua cela na temível ala dos prisioneiros políticos da penitenciária Evin, em Teerã, Haleh Esfandiari, 67, conseguia ver um pedaço do céu. Na terceira vez que percebeu que era noite de Lua cheia, soube que havia passado mais de três meses na solitária [entre 8/5 e 23/8], sem ter sido acusada formalmente por nenhum crime e enfrentando interrogatórios diários que duravam de duas a três horas.
Diretora do programa para o Oriente Médio do Wilson Center, um renomado "think tank"", como são chamados esses centros de estudo nos EUA, e autora de "Reconstructed Lives - Women and Iran's Islamic Revolution" (Vidas Reconstruídas - As Mulheres e a Revolução Islâmica do Irã), a acadêmica acabava de visitar a mãe no Irã e se dirigia ao aeroporto, quando foi "supostamente assaltada", como diz, e teve os documentos roubados. Ao tentar tirar passaporte novo, foi presa, em 8 de maio.
Seus interrogadores diziam que ela era uma espiã a serviço do governo norte-americano e que tinha ido ao país organizar uma "revolução de veludo", incitar a oposição ao regime dos aiatolás a mudar o governo. "Eu nunca tinha ouvido esse termo", disse ela à Folha na semana passada, recém-chegada a Washington, onde mora e trabalha e para onde voltou depois de 105 dias presa.
Na entrevista, Esfandiari fala sobre mulheres detidas por usarem roupas muito ocidentais, reage à visita de Mahmoud Ahmadinejad a Nova York, comenta o programa nuclear iraniano e responde às críticas feitas a instituições que recebem dinheiro do governo dos EUA para ajudar a promover mudanças de regime em outros países -o que não é o caso de seu programa.
E diz se há lugar, hoje, para uma "revolução de veludo" no Irã.

FOLHA - A sra. nunca foi acusada oficialmente, mas membros do governo iraniano afirmaram que a sra. estava organizando uma "revolução de veludo" lá. Estava?
HALEH ESFANDIARI -
Quando os interrogadores usaram essa expressão pela primeira vez, eu não tinha a menor idéia do que estavam falando. De verdade.
Eu disse: "Revolução de veludo? O que é isso?". Eles acharam que eu estava sendo sarcástica ou irônica. Quando viram que não, me deram os exemplos da Ucrânia e da Geórgia. Respondi: "Mas pensei que a da Ucrânia era a Revolução Laranja".
Eu visitava minha mãe, que vive em Teerã. E o fato é que nem tenho tanto interesse no Irã. No programa que dirijo, lidamos com todo o Oriente Médio. Ou seja, já há países e problemas suficientes.

FOLHA - Ainda assim, a sra. vê lugar para uma mudança de regime desse tipo no Irã?
ESFANDIARI -
Não, não uma revolução com envolvimento de agentes externos. Se houver uma mudança no Irã, será como aconteceu no período de Khatami [presidente de 1997 a 2005]: uma abertura da sociedade vinda de dentro do próprio país, e não uma mudança de regime.
Se você estudar a história da Revolução Islâmica, verá que houve certa abertura sob Rafsanjani [1989-1997], então uma maior com Khatami, uma unidade maior dos grupos diferentes e até uma unidade no país.
Mas é um ciclo, abertura, recrudescimento, abertura. Assim, creio que a mudança virá de uma abertura, mais do que de uma mudança drástica.

FOLHA- A sra. teve bastante contato com as mulheres. Elas são felizes sob o regime atual?
ESFANDIARI -
As mulheres iranianas lutaram por direitos iguais, acharam que a Revolução lhes daria todos os direitos que não tinham no Irã pré-revolucionário.
Esperavam que as leis familiares evoluíssem, que elas teriam direito a se divorciar -e não só os homens-, que a idade mínima permitida para a mulher se casar continuasse se elevando, de 13 anos para 15 anos e então para 18 anos, que a custódia dos filhos começasse a ser mais dada às mulheres, não automaticamente aos homens. A febre revolucionária tomou todo mundo, incluindo as mulheres, de todas as classes.
Mas isso não aconteceu. Elas não podem se divorciar, a idade mínima do casamento chegou a ser reduzida para nove anos -hoje é de 13.
Socialmente, ainda há várias restrições. Não podem se misturar ou interagir com homens em locais públicos, mas interagem. Os ônibus são separados, mas nos táxis as mulheres sentam ensanduichadas entre dois homens no banco traseiro.
Em algumas repartições públicas, há mulheres e homens trabalhando em escritórios diferentes, mas em outros eles estão juntos. Sinto que os jovens estão insatisfeitos com a situação, querem mais liberdade, interagir com garotas, então há muita tensão na sociedade.

FOLHA - Há notícias de ações recentes do governo tentando fazer valer o rígido código moral islâmico, como a prisão e, segundo alguns relatos, enforcamento de homossexuais e blitze para apanhar mulheres com cabeça descoberta ou roupas consideradas muito ocidentais. A sra. viu isso?
ESFANDIARI -
Quanto ao enforcamento de homossexuais, não acompanhei esse assunto, então não sei. Quanto à prisão de mulheres por conta dos costumes, isso acontece todo verão.
Quando o tempo esquenta, elas vão às ruas mais descobertas. Mostram mais a cabeça, os pés, os braços, as canelas.
Então, você volta a ver aquelas minivans nas ruas de Teerã prendendo garotas que usam muita maquiagem ou não observam o código de vestimenta.

FOLHA - Seu caso serviu também para reviver a crítica que se faz ao governo norte-americano de se utilizar de organizações para promover mudança de regime, as tais "revoluções de veludo". Qual sua opinião?
ESFANDIARI -
Eles acreditam sinceramente -pelo menos os meus interrogadores do Ministério de Informação, não sei quanto ao resto do governo iraniano- que, se o governo norte-americano não quiser mais ou não puder fazer ou não tiver mais interesse em um ataque militar ao Irã, procurará a mudança de regime via a chamada "revolução de veludo".
E que o instrumento para isso seriam os "think tanks", as fundações, as universidades, as conferências que são organizadas no exterior e nos EUA.
Eles acham que qualquer pessoa que contribua com um "think tank" ou com uma universidade tem uma intenção oculta. Eles realmente acreditam que esses lugares, incluído o Wilson Center, são instrumentos do governo dos EUA.

FOLHA - Qual sua impressão da visita de Mahmoud Ahmadinejad à Universidade Columbia, na semana passada?
ESFANDIARI -
Não tive tempo de ler o que ele falou ainda, mas vi pedaços na TV. Ouvi quando lhe perguntaram e ele disse que não há homossexuais no Irã. Fiquei surpresa com a resposta.

FOLHA - Alguns analistas dizem que o fato de o presidente iraniano ter sido maltratado nos EUA só fortalece sua imagem junto ao público doméstico. A sra. concorda?
ESFANDIARI -
Não quero soar como o presidente Ahmadinejad, mas você acha que ele foi maltratado? É que ele sempre rebate uma pergunta com outra pergunta. [Risos] Ele conseguiu muita exposição aqui, algumas das perguntas foram duras, outras menos.
De qualquer maneira, se as pessoas na região acharem que ele foi maltratado, isso o tornará popular. Mas, se as pessoas acharem que ele foi habilidoso ao lidar com as questões duras que lhe fizeram, ele vai sair como um herói também. Então...

FOLHA - Outra análise feita é que, ao deixar que Ahmadinejad diga o que diz, os aiatolás estão desviando para ele as atenções negativas que, de outra maneira, seriam direcionadas para si próprios. Nesse sentido, o presidente não passaria de um instrumento nas mãos dos aiatolás.
ESFANDIARI -
Não posso pensar que o presidente do Irã tenha tão pouca força assim. Sabemos que as eleições são controladas, mas ainda assim... Quando lê um discurso, ele foi escrito por alguém, passou por vários órgãos e chega com a aprovação provavelmente do escritório do líder [o aiatolá Khamenei].
Por outro lado, questões de política externa sempre foram decididas pelo líder, nunca foram prerrogativa do presidente ou do ministro das Relações Exteriores, e isso não mudou.

FOLHA - Na última semana, o presidente Lula disse que até agora o Irã não quebrou nenhuma lei em relação a seu programa nuclear e aceitou todas as decisões da agência da ONU que regula o tema. É o que a sra. pensa também?
ESFANDIARI -
O tema não é minha especialidade, mas, do pouco que sei, eles realmente não quebraram nenhuma lei e seguiram todas as regras da agência. Sei também que ao menos esse programa é apoiado pela maioria dos iranianos.
O argumento deles é: se os países vizinhos têm acesso a armas nucleares, como Paquistão, Índia, Israel, por que não o Irã? Se a população concorda em alguma coisa, eu diria que é nessa questão.

FOLHA - Uma acusação freqüente feita ao Irã é o envolvimento não-oficial no Iraque.
ESFANDIARI -
Não creio que o Irã vá ficar sentando assistindo ao que está acontecendo no Iraque, porque tudo o que se passa ali sempre trará conseqüências para o país. Seja a questão dos refugiados, seja a dos combatentes estrangeiros tentando cruzar a fronteira, então há um interesse natural.
Há também as peregrinações xiitas, uma grande afinidade entre xiitas iraquianos e iranianos, principalmente no sul, também tem havido casamentos entre famílias de clérigos em ambos os lados. Sempre houve essa conexão.
Agora, se o Irã está armando alguns grupos no Iraque, realmente não sei.

FOLHA - A sra. pensa em voltar ao seu país algum dia?
ESFANDIARI -
Ainda não sei, não quero pensar a respeito. Para ser muito honesta, ainda não consegui bloquear na minha cabeça essa minha última passagem...

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