São Paulo, sexta-feira, 01 de dezembro de 2006

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JANIO DE FREITAS

Liberdade incondicional

Muitos juristas se opõem à reforma de privilégios ao preso; a realidade é o nosso contra-argumento

TODOS OS dias há casos assim no Rio, em São Paulo, em Minas, onde quer que o crime violento se propague como meio de vida da adolescência e da mocidade no Brasil. Como não fica bem, para um jornalista, falar de criminalidade urbana que não seja a do Rio, tomemos dois momentos do mesmo dia carioca.
Foragido desde a prisão do seu companheiro no assalto em que foi assassinada a socialite Ana Cristina Johannpeter, Marcelo de Mello Valério entregou-se à polícia por insistência da mãe. De quem se trata? Morador em apartamento da Cruzada São Sebastião, criada no Leblon por d. Helder para dar moradia direita a favelados daquela mesma área, Marcelo está com 21 anos, tem o ensino médio completo, e nunca o usou para obter um trabalho convencional. Mas seu currículo profissional já é farto e promissor, embora dois imprevistos.
O primeiro em 2003, quando um mau acaso, e não propriamente a falta de prática, levou-o a ser preso como autor de um assalto. Só esteve preso, porém, por cerca de ano e meio. O segundo imprevisto foi no meio do ano, quando estava na companhia de oito amigos, todo o grupo com passagens pela polícia por crimes diversos, e policiais chegaram de repente. Acharam quantidade interessante de tóxico com a rapaziada. Todos presos, mais uma vez.
Ex-detento por assalto, preso há quatro meses por "associação ao tráfico", Marcelo só pôde participar do assalto e do assassinato de Ana Cristina Johannpeter por estar livre e em condições de exercer sua atividade profissional.
Como assim? Mês e meio depois da segunda prisão, o ex-detento por assalto e preso por tráfico foi agraciado com relaxamento da nova prisão e liberdade para responder ao processo usufruindo, ativamente, das ruas e praias freqüentadas por tantas vítimas potenciais na Zona Sul carioca. Decisão de juiz relapso? Não. Outra vez, privilégios de lei.
Bem pertinho da Cruzada e da delegacia do Leblon (são velhas vizinhas), o mau acaso passou de Marcelo a dois ocupantes de uma moto que toparam com outra moto, e logo mais uma, porém estas duas da PM.
Os rapazes estavam trabalhando desde cedo: acabavam de fazer um bem-sucedido assalto a turistas na Lagoa, quando foram apontados ao primeiro PM, mas antes já haviam dado boas-vindas a outros turistas na praia. Um dos rapazes era estreante. Não na profissão, na polícia. João Ayrton Gonçalves, seu companheiro, já tem currículo oficial. Foi preso três vezes por furto. Foi preso mais três vezes, por "roubo à mão armada". E preso mais uma vez: por seqüestro à mão armada e retenção da vítima em cárcere privado. Um ás da profissão, sem dúvida.
O conjunto da obra de João Gonçalves rendeu-lhe uma condenação que começou a cumprir em 1988. Mas nem três assaltos à mão armada nem seqüestro nem cárcere privado da vítima o impediram de estar, apenas oito anos depois de ser preso e condenado, em intenso exercício da sua vocação.
Muitos criminalistas e juristas opõem-se à reforma de privilégios, por exemplo, como a chamada "progressão da pena", que a rigor é redução da pena a um sexto, em nome de bom comportamento do preso. Trazem do direito argumentos poderosos. Nosso contra-argumento de leigos é só a realidade.
E, no Brasil, a realidade perde sempre, até que engolfa tudo, insuportável, e a indignação explode, acusações para todos os lados, exigência de solução imediata -e até a próxima. A realidade, no entanto, já será outra, muito maior, muito pior, porque esta é a lei das más realidades deixadas a si mesmas: em liberdade incondicional.


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