São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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BRASIL CAMARADA

Órgão que deveria receber R$ 100 bi de devedores de SP tem déficit de funcionários e ignorou alerta de auditoria

Governo é omisso ao cobrar megadívidas

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Cida (Cadastro de Informações da Dívida Ativa da União) tornou-se refúgio seguro para as empresas que devem mais de R$ 10 milhões em impostos. Além de ter acesso a parcelamentos a perder de vista, os grandes devedores se beneficiam da omissão do governo na cobrança do débito.
Brasília vem desrespeitando sistematicamente a lei 9.532, de dezembro de 1997. Ela determina, em seu artigo 67, que a cobrança de megadébitos deve ter prioridade sobre o ajuizamento de dívidas menores. No discurso, o governo diz que cumpre a lei. A prática demonstra o contrário.
Espécie de mega-Serasa em que são inscritos os nomes de devedores contumazes do erário, o Cida contabiliza créditos tributários não honrados no valor de R$ 198 bilhões. Embora o cadastro anote o nome de 4,5 milhões de contribuintes omissos, 80% da dívida estão é de 5% dos devedores.
Estima-se que metade de toda a dívida, algo em torno de R$ 100 bilhões, está concentrada no Estado de São Paulo. Criou-se na capital paulista, em 2003, um Departamento de Cobrança de Grandes Devedores. Conta, porém, com quadros incompatíveis com o montante a ser cobrado: apenas quatro procuradores fazendários e três estagiários de direito.
O departamento funciona no escritório paulistano da Procuradoria da Fazenda Nacional. É o braço jurídico do Ministério da Fazenda, a quem cabe cobrar a dívida ativa. No momento, os procuradores de São Paulo tentam destrinchar os processos relativos a 400 empresas. Juntas, devem cerca de R$ 55 bilhões.

Alerta da auditoria
Em auditoria realizada na Procuradoria da Fazenda em São Paulo, entre agosto e setembro de 2003, a Controladoria Geral da União, vinculada à Presidência, constatou que a estrutura montada para a cobrança de grandes débitos é flagrantemente ineficaz.
A desatenção com as dívidas mais robustas não se restringe a São Paulo. Ocorre também em outras unidades da Procuradoria da Fazenda, que possui escritórios em todas as capitais brasileiras e seccionais em 62 municípios do interior do país.
Documento confidencial da Controladoria da União, de 29 de setembro de 2003, anota: "Até o presente momento, não foram adotadas medidas suficientes que possibilitem a realização de um acompanhamento efetivo dos processos relacionados aos grandes devedores."
Em outro relatório sigiloso, de 19 de setembro de 2003, a Controladoria da União afirma, referindo-se especificamente à situação de São Paulo: "É possível afirmar, sem margem de erro, que os procuradores que atuam junto ao projeto grandes devedores não têm conhecimento sobre a composição dos devedores que efetivamente pertencem a esse grupo, quais os valores devidos individualmente e qual a real situação de cada devedor em particular".
O procurador-geral da Fazenda Nacional, Manuel Felipe Rêgo Brandão, vê exagero na avaliação do órgão de auditagem da Presidência. Diz que a Procuradoria da Fazenda dá prioridade aos devedores graúdos "na medida que o seu quadro funcional permite." Ele tem sob seu comando um time de 1.200 procuradores. Gostaria de dispor de pelo menos 2.500.
É pouca gente, reconhecem os auditores da Controladoria da União. Há em São Paulo só 79 procuradores fazendários. Só metade se ocupa diretamente da cobrança da dívida ativa, incluindo grandes e pequenos débitos.
Cada procurador acompanha simultaneamente uma média de 7.472 processos. Nos casos mais importantes, enfrentam algumas das mais renomadas bancas privadas de advocacia tributária do país, mobilizadas pelos devedores com maior poder econômico.
A ineficácia do aparato público no trato das maiores dívidas tributárias não se restringe ao atual governo. Vem de longe. Sob Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Fazenda criou o Programa Grandes Devedores. No papel, dava primazia à cobrança das maiores dívidas. No mundo real, caiu no vazio.

Dívida incobrável
A Procuradoria da Fazenda Nacional elaborou, em 31 de dezembro de 2002, último dia do governo FHC, um pomposo relatório de gestão. Foi assinado pelo procurador-geral de então, Almir Martins Bastos.
O documento afirma, à página sete: "No ano de 2002, retomou-se, de forma estruturada, o tratamento prioritário para cobrança dos grandes devedores da Fazenda Nacional -débitos de valor superior a R$ 10 milhões- ou em cujos processos haja seguros indícios da prática de crimes fiscais."
A julgar pelas avaliações da Controladora Geral da União, trata-se de pura balela. Em decisão do ano passado (acórdão 122/ 2003), o Tribunal de Contas da União chegou a conclusões semelhantes às da Controladoria. Aprovado em sessão plenária do Tribunal, o documento afirma que o Projeto Grandes Devedores, por ineficiente, precisa passar por reformulação.
Embora o montante da dívida ativa (R$ 198 bilhões) assuste, o desafio da Procuradoria da Fazenda Nacional é menor do que parece. Um naco de cerca de R$ 44 bilhões encontra-se fora do alcance dos procuradores. Está dividido assim:
1) R$ 2,5 bilhões em débitos inferiores a R$ 2.500. Não valem o ajuizamento de uma ação. Estima-se que um processo judicial de cobrança custa para o governo no mínimo R$ 10.000;
2) R$ 15 bilhões foram parcelados pelo Refis. Lançado em 2000, o programa concede aos devedores prazos de pagamento generosos -até 8.900 séculos, conforme revelou a Folha, em sua edição de ontem. Uma vez parcelada, a dívida deixa de compor o passivo sujeito a cobrança judicial;
3) R$ 25 bilhões foram parcelados pelo Paes, programa também conhecido como Refis 2, editado já sob Luiz Inácio Lula da Silva. Assim como as dívidas beneficiadas com o Refis 1, saíram da alça de mira da Procuradoria da Fazenda;
4) R$ 1,5 bilhão refere-se a débito fracionado em operações de parcelamento convencionas da Receita. O prazo é menos elástico (até 60 meses). As condições, menos generosas do que as oferecidas pelo programas especiais;
Restam, portanto, R$ 154 bilhões em débitos passíveis de ajuizamento. Na maior parte dos casos, a lentidão e a ineficiência da Procuradoria da Fazenda Nacional acomodam o governo no final da fila dos credores.
O exemplo de Brasília é eloquente. Na capital da República, a dívida ativa soma cerca de R$ 5 bilhões. Desse total, R$ 3 bilhões estão nas mãos de grandes devedores; R$ 1 bilhão compõe uma dívida que a própria Procuradoria da Fazenda considera "incobrável". Pertencem a duas massas falidas: a construtora Encol e a empresa de aviação Transbrasil.



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