São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

KEVIN BALES

Especialista norte-americano contabiliza 27 milhões de pessoas escravas no mundo, 200 mil no país

Fim da escravidão depende de punição a beneficiários finais

FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

Quase 116 anos após a abolição formal no Brasil, a escravidão contemporânea segue enraizada -sobretudo graças ao seu baixo custo econômico- e pode atingir até 200 mil pessoas no país.
A opinião e a estimativa "pouco precisa", como ele próprio assinala, são do sociólogo norte-americano Kevin Bales, 51, considerado o maior especialista mundial em escravidão contemporânea, que por oito anos pesquisou o tema em países de cinco continentes.
Para combater a prática no país, o governo Lula deveria tomar seis medidas, na opinião de Bales, entre as quais reformar a lei de modo a permitir que a investigação "siga o dinheiro" para encontrar os beneficiários finais da utilização do trabalho escravo (quem, na ponta, compra com baixo custo o que é produzido pelos trabalhadores explorados) e aumentar o número de equipes especiais de combate à prática.
Parte do esforço está no livro "Disposable People: New Slavery in the Global Economy" (Pessoas descartáveis: a nova escravidão na economia global), publicado em 2000 nos EUA e traduzido para nove línguas, inclusive o português -de Portugal.
No Brasil, as andanças de Bales o levaram às carvoarias de Água Clara (MS), cidade distante 190 km de Campo Grande -um dos grandes focos de trabalho escravo investigados no país.
"Apesar de perceberem que estavam numa situação de endividamento e mesmo sabendo que isso era ilegal, eles consideravam como uma questão de honra continuar ali até pagar o débito de alguma forma. Isso foi muito marcante para mim", lembra Bales.
O Brasil, aliás, foi o único país ocidental a receber um capítulo no livro de 2000. Aparece ao lado da Mauritânia, da Índia, do Paquistão e da Tailândia.
Bales estima que existam no Brasil até 200 mil escravos -número aproximado a que chegou estudando as atividades em que tem se concentrado a exploração do trabalho escravo. Em todo o mundo, o número de escravos chega a 27 milhões.
Sobre o assassinato de três fiscais do Trabalho mais um motorista no interior de Minas Gerais, na semana passada, Kevin Bales diz: "Temos tido pessoas feridas ou assassinadas em todo o mundo. Isso mostra a violência usada pelos donos de escravos."
Há três anos, o sociólogo pesquisa escravidão nos EUA, cuja população escrava varia de 50 mil a 100 mil pessoas, segundo ele. Estuda também formas de reabilitação dos ex-escravos.
Leia a entrevista concedida por telefone de Oxford (Mississippi):

 

Folha - Como o sr. define a escravidão contemporânea?
Kevin Bales -
A escravidão pode ser definida hoje da mesma forma como foi reconhecida durante toda a história da humanidade. Pode-se definir escravo como uma pessoa sob controle total de outra pessoa por meio de violência ou de ameaça de violência. Um escravo não recebe nenhum pagamento e é explorado economicamente. Os escravos podem ser alimentados, mas não há nenhuma forma de pagamento razoável.

Folha - No Brasil, qual é a diferença entre a escravidão atual e a do tempo colonial?
Bales -
A diferença fundamental hoje é o baixo custo de um escravo. No passado, um escravo no Brasil era uma mercadoria muito cara, o equivalente a milhares de reais. Hoje, pode-se levar uma pessoa à escravidão por meio de trapaça, prometendo emprego e a levando para a área rural por uma quantia bem pequena, poucas centenas de reais. Esse fator é muito perigoso. A partir do momento em que as pessoas são tão baratas, elas não representam um investimento. Para pessoas inescrupulosas, há poucos motivos para não matá-los caso decidam ser essa a forma mais fácil para lidar com eles.

Folha - A questão econômica é portanto o fator-chave da escravidão?
Bales -
Obviamente é avareza econômica. Mas não é o único motivo. Nossa ignorância sobre escravidão moderna encoraja os escravizadores. Essa ignorância é tanto da opinião pública quanto dos governos.

Folha - O que o episódio da semana passada, quando três fiscais foram mortos, revela sobre a situação brasileira?
Bales -
Como parte do movimento global anti-escravidão, envio minhas condolências às famílias dos trabalhadores. Infelizmente, eles não são os únicos trabalhadores contra a escravidão mortos nos últimos anos. Temos tido pessoas feridas ou assassinadas em todo o mundo. Isso simplesmente mostra a violência usada pelos donos de escravos.

Folha - Em seu livro, o Brasil é o único país ocidental a merecer um capítulo inteiro. O país tem uma situação diferenciada?
Bales -
Não creio que se trate de uma situação única, mas obviamente o Brasil é especial de várias formas. Tem uma grande área que pode ser chamada de fronteira. Uma das coisas que sabemos é que são lugares onde o Estado de direito não chegou ou foi rompido. São situações nas quais a escravidão pode emergir. O Brasil tem um grande território. Na Amazônia, no Pará, em Mato Grosso do Sul, onde o Estado de direito fica tênue, enfraquecido ou talvez até desapareça. Nessas situações, as pessoas inescrupulosas podem usar a violência para controlar a vida das pessoas.

Folha - Há um componente cultural na escravidão brasileira?
Bales -
Em muitos aspectos, não, se compararmos o Brasil com países do Velho Mundo. A escravidão na Mauritânia, na Tailândia ou na Índia é profundamente enraizada na cultura. No Brasil, há grande ênfase na liberdade individual. Não creio que exista necessariamente um suporte cultural para a escravidão. O que existe na é uma disparidade econômica. Essa injustiça se traduz numa enorme quantidade de pessoas que, de tão pobres, se tornam vulneráveis à escravidão.

Folha - O sr. fez um trabalho de campo nas carvoarias de Mato Grosso do Sul. O que lhe chamou a atenção ali em comparação com outros países que visitou?
Bales -
Apesar de eu ter dito que o Brasil não tem uma cultura da escravidão, uma das diferenças-chave é que as pessoas escravizadas no Brasil chegam a essa situação já na idade adulta. Um homem mineiro que está desesperado para sustentar a família pode acabar fabricando carvão no extremo-oeste. Outro fator marcante é a honestidade das pessoas escravizadas. Apesar de perceberem que estavam numa situação de endividamento e mesmo sabendo que isso era ilegal, eles consideravam uma questão de honra continuar ali até pagar o débito de alguma forma. Isso foi muito marcante para mim, a dignidade das pessoas pobres.

Folha - A herança escravista explica por que o Brasil ocupa uma situação precária com relação à escravidão?
Bales -
O Brasil não é o único. Há escravidão no Haiti, sabemos que há bastante tráfico humano na República Dominicana. Há abusos no México, na Guatemala, no Peru, na Colômbia, na Venezuela. Mas alguns desses países simplesmente não têm sido estudados tão bem quanto o Brasil. Uma explicação é que a imprensa é muito boa. No Brasil, podemos contar com a imprensa para divulgar o assunto. Ao menos hoje. Em outros países, não é sempre assim.

Folha - O Brasil, no entanto, já experimenta duas décadas de democracia. Há uma deficiência de políticas públicas contra o problema?
Bales -
As políticas públicas foram limitadas. Por exemplo, as equipes de fiscalização contra escravidão. Por muitos anos, havia apenas três dessas equipes, praticamente sem verba.
Agora, o atual governo, estou feliz em afirmar, se comprometeu claramente.

Folha - Que tipo de comprometimento?
Bales -
O governo se comprometeu em aumentar os recursos contra escravidão, segundo as pessoas das quais recebo informes.

Folha - No ano passado, houve um aumento significativo de libertação de trabalhadores. Uma questão crucial é saber se a escravidão aumentou ou se o Estado se tornou mais eficiente na fiscalização.
Bales -
Acredito que seja mais o caso de que o governo está fazendo um trabalho melhor. Não acho que haja um aumento do número de pessoas escravizadas. Mas não tenho certeza sobre isso.

Folha - O que pode ser feito em termos de políticas públicas no Brasil?
Bales -
No prefácio que escrevi para o livro "Vidas Roubadas", de Binka Le Breton, propus as seguintes medidas: 1) formar uma força-tarefa nacional contra a escravidão e o tráfico humano, liderada por um chefe enérgico e com poder e recursos; 2) reformar a lei para permitir, em nível federal, processar traficantes e donos de escravos; 3) reformar a lei de forma a permitir que a investigação "siga o dinheiro" para encontrar quem se beneficia das fazendas, minas e carvoarias que usam o trabalho escravo; 4) aumentar o número de equipes especiais de combate ao trabalho forçado para, pelo menos, 20; 5) punir severamente corrupção policial e de funcionários públicos; e 6) deslocar recursos significativos para erradicar a escravidão e preveni-la por meio de educação pública. Esse gasto corresponde a apenas uma fração do que o Brasil perde toda vez que o "New York Times" publica reportagem sobre o uso do trabalho escravo em produtos de exportação.

Folha - A maioria dos escravizados é negra. A escravidão no país ainda tem um componente racial determinante?
Bales -
Não exatamente. A realidade é que, hoje, as diferenças de cor provavelmente refletem mais a sua posição econômica. Há brancos que são pobres, vulneráveis e estão desesperados por trabalho a ponto de se verem nessa situação -serão escravizados também. Mas é uma indicação o fato de ser possível ver diferenças na cor refletir no bem-estar econômico dessas parcelas da população.

Folha - Quantos escravos existem no Brasil e no mundo?
Bales -
No mundo, estimo em cerca de 27 milhões de pessoas; no Brasil, em até 200 mil escravos. É um número pouco preciso. Eu falei com várias pessoas que trabalham nessa área no Brasil. Obviamente, é uma atividade criminal, portanto difícil de mensurar. É apenas um número de trabalho, não apostaria minha vida nele.

Folha - Como o sr. chegou a esse número?
Bales -
Nós examinamos diferentes formas de atividade econômica que nós sabemos usar trabalho escravo, como carvoarias, desmatamento, prostituição e outras. Tentamos estimar quantas pessoas devem estar em cada uma dessas áreas. Mas é um número muito difícil para calcular. Em termos de comparação: atualmente, estou calculando o número de pessoas escravizadas nos EUA. E chegamos a algo de 50 mil a 100 mil pessoas.

Folha - Como ocorre a escravidão nos EUA? A maioria é estrangeira?
Bales -
Sim, a maioria foi introduzida no país via tráfico vindo da América Latina, da Ásia, do Leste Europeu e da África. Trabalham na agricultura, como trabalhadores domésticos, em restaurantes, em "sweatshops" [pequenas fábricas] e em prostituição.

Folha - Qual é o país em pior situação hoje?
Bales -
Isso depende de como se olha. Em termos numéricos, é a Índia. Mas é um país com 1 bilhão de pessoas. Há, no entanto, um problema significativo de escravidão, e muitas vezes isso é hereditário. Há famílias que têm sido escravizadas há várias gerações. Mas há escravidão em quase todos os países do mundo. Acredito que todos os países europeus tenham escravidão. Suspeito que todos os sul-americanos tenham escravidão, mas não posso provar isso.

Folha - E proporcionalmente?
Bales -
De novo, os países do sul da Ásia: Paquistão, Nepal e Índia. Provavelmente a Mauritânia tenha a proporção mais alta.

Folha - O sr. acha que a escravidão pode ser eliminada?
Bales -
Vinte e sete milhões de escravos é um número muito pequeno se comparado à população mundial, de mais de 6 bilhões de pessoas. E não precisamos convencer ninguém contra a escravidão nem vencer o argumento econômico, pois se trata de uma atividade ilegal em todos os países. A escravidão pode ser extinta.



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