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ENTREVISTA DA 2ª
KEVIN BALES
Especialista norte-americano contabiliza 27 milhões de pessoas escravas no mundo, 200 mil no país
Fim da escravidão depende de punição a beneficiários finais
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Quase 116 anos após a abolição
formal no Brasil, a escravidão
contemporânea segue enraizada
-sobretudo graças ao seu baixo
custo econômico- e pode atingir
até 200 mil pessoas no país.
A opinião e a estimativa "pouco
precisa", como ele próprio assinala, são do sociólogo norte-americano Kevin Bales, 51, considerado
o maior especialista mundial em
escravidão contemporânea, que
por oito anos pesquisou o tema
em países de cinco continentes.
Para combater a prática no país,
o governo Lula deveria tomar seis
medidas, na opinião de Bales, entre as quais reformar a lei de modo a permitir que a investigação
"siga o dinheiro" para encontrar
os beneficiários finais da utilização do trabalho escravo (quem,
na ponta, compra com baixo custo o que é produzido pelos trabalhadores explorados) e aumentar
o número de equipes especiais de
combate à prática.
Parte do esforço está no livro
"Disposable People: New Slavery
in the Global Economy" (Pessoas
descartáveis: a nova escravidão na
economia global), publicado em
2000 nos EUA e traduzido para
nove línguas, inclusive o português -de Portugal.
No Brasil, as andanças de Bales
o levaram às carvoarias de Água
Clara (MS), cidade distante 190
km de Campo Grande -um dos
grandes focos de trabalho escravo
investigados no país.
"Apesar de perceberem que estavam numa situação de endividamento e mesmo sabendo que
isso era ilegal, eles consideravam
como uma questão de honra continuar ali até pagar o débito de alguma forma. Isso foi muito marcante para mim", lembra Bales.
O Brasil, aliás, foi o único país
ocidental a receber um capítulo
no livro de 2000. Aparece ao lado
da Mauritânia, da Índia, do Paquistão e da Tailândia.
Bales estima que existam no
Brasil até 200 mil escravos -número aproximado a que chegou
estudando as atividades em que
tem se concentrado a exploração
do trabalho escravo. Em todo o
mundo, o número de escravos
chega a 27 milhões.
Sobre o assassinato de três fiscais do Trabalho mais um motorista no interior de Minas Gerais,
na semana passada, Kevin Bales
diz: "Temos tido pessoas feridas
ou assassinadas em todo o mundo. Isso mostra a violência usada
pelos donos de escravos."
Há três anos, o sociólogo pesquisa escravidão nos EUA, cuja
população escrava varia de 50 mil
a 100 mil pessoas, segundo ele. Estuda também formas de reabilitação dos ex-escravos.
Leia a entrevista concedida por
telefone de Oxford (Mississippi):
Folha - Como o sr.
define a escravidão
contemporânea?
Kevin Bales - A
escravidão pode
ser definida hoje
da mesma forma
como foi reconhecida durante toda
a história da humanidade. Pode-se definir escravo
como uma pessoa
sob controle total
de outra pessoa
por meio de violência ou de ameaça de violência.
Um escravo não
recebe nenhum
pagamento e é explorado economicamente. Os escravos podem ser
alimentados, mas
não há nenhuma
forma de pagamento razoável.
Folha - No Brasil,
qual é a diferença entre a escravidão atual e a do tempo colonial?
Bales - A diferença fundamental
hoje é o baixo custo de um escravo. No passado, um escravo no
Brasil era uma mercadoria muito
cara, o equivalente a milhares de
reais. Hoje, pode-se levar uma
pessoa à escravidão por meio de
trapaça, prometendo emprego e a
levando para a área rural por uma
quantia bem pequena, poucas
centenas de reais. Esse fator é
muito perigoso. A partir do momento em que as pessoas são tão
baratas, elas não representam um
investimento. Para pessoas inescrupulosas, há poucos motivos
para não matá-los caso decidam
ser essa a forma mais fácil para lidar com eles.
Folha - A questão econômica é
portanto o fator-chave da escravidão?
Bales - Obviamente é avareza
econômica. Mas não é o único
motivo. Nossa ignorância sobre
escravidão moderna encoraja os
escravizadores. Essa ignorância é
tanto da opinião pública quanto
dos governos.
Folha - O que o episódio da semana passada, quando três fiscais foram mortos, revela sobre a situação
brasileira?
Bales - Como parte
do movimento global anti-escravidão,
envio minhas condolências às famílias
dos trabalhadores.
Infelizmente, eles
não são os únicos
trabalhadores contra
a escravidão mortos
nos últimos anos.
Temos tido pessoas
feridas ou assassinadas em todo o mundo. Isso simplesmente mostra a violência
usada pelos donos de
escravos.
Folha - Em seu livro,
o Brasil é o único país
ocidental a merecer
um capítulo inteiro. O
país tem uma situação diferenciada?
Bales - Não creio que se trate de
uma situação única, mas obviamente o Brasil é especial de várias
formas. Tem uma grande área
que pode ser chamada de fronteira. Uma das coisas que sabemos é
que são lugares onde o Estado de
direito não chegou ou foi rompido. São situações nas quais a escravidão pode emergir. O Brasil
tem um grande território. Na
Amazônia, no Pará, em Mato
Grosso do Sul, onde o Estado de
direito fica tênue, enfraquecido
ou talvez até desapareça. Nessas
situações, as pessoas inescrupulosas podem usar a violência para
controlar a vida das pessoas.
Folha - Há um componente cultural na escravidão brasileira?
Bales - Em muitos aspectos, não,
se compararmos o Brasil com países do Velho Mundo. A escravidão na Mauritânia, na Tailândia
ou na Índia é profundamente
enraizada na cultura. No Brasil,
há grande ênfase na liberdade individual. Não creio que exista necessariamente um suporte cultural para a escravidão. O que existe
na é uma disparidade econômica.
Essa injustiça se traduz numa
enorme quantidade de pessoas
que, de tão pobres, se tornam vulneráveis à escravidão.
Folha - O sr. fez um trabalho de
campo nas carvoarias de Mato
Grosso do Sul. O que lhe chamou a
atenção ali em comparação com
outros países que visitou?
Bales - Apesar de eu ter dito que
o Brasil não tem uma cultura da
escravidão, uma das diferenças-chave é que as pessoas escravizadas no Brasil chegam a essa situação já na idade adulta. Um homem mineiro que está desesperado para sustentar a família pode
acabar fabricando carvão no extremo-oeste. Outro fator marcante é a honestidade das pessoas escravizadas. Apesar de perceberem que estavam numa situação
de endividamento e mesmo sabendo que isso era ilegal, eles consideravam uma questão de honra
continuar ali até pagar o débito de
alguma forma. Isso foi muito
marcante para mim, a dignidade
das pessoas pobres.
Folha - A herança escravista explica por que o Brasil ocupa uma situação precária com relação à escravidão?
Bales -O Brasil não é o único. Há
escravidão no Haiti, sabemos que
há bastante tráfico humano na
República Dominicana. Há abusos no México, na Guatemala, no
Peru, na Colômbia, na Venezuela.
Mas alguns desses países simplesmente não têm sido estudados tão
bem quanto o Brasil. Uma explicação é que a imprensa é muito
boa. No Brasil, podemos contar
com a imprensa para divulgar o
assunto. Ao menos hoje. Em outros países, não é sempre assim.
Folha - O Brasil, no entanto, já experimenta duas décadas de democracia. Há uma deficiência de políticas públicas contra o problema?
Bales -As políticas públicas foram limitadas. Por exemplo, as
equipes de fiscalização contra escravidão. Por muitos anos, havia
apenas três dessas equipes, praticamente sem verba.
Agora, o atual governo, estou feliz em afirmar, se comprometeu
claramente.
Folha - Que tipo de comprometimento?
Bales - O governo se comprometeu em aumentar os recursos contra escravidão, segundo as pessoas das quais recebo informes.
Folha - No ano passado, houve
um aumento significativo de libertação de trabalhadores. Uma questão crucial é saber se a escravidão
aumentou ou se o Estado se tornou
mais eficiente na fiscalização.
Bales - Acredito que seja mais o
caso de que o governo está fazendo um trabalho melhor. Não acho
que haja um aumento do número
de pessoas escravizadas. Mas não
tenho certeza sobre isso.
Folha - O que pode ser feito em
termos de políticas públicas no
Brasil?
Bales - No prefácio que escrevi
para o livro "Vidas Roubadas", de
Binka Le Breton, propus as seguintes medidas: 1) formar uma
força-tarefa nacional contra a escravidão e o tráfico humano, liderada por um chefe enérgico e com
poder e recursos; 2) reformar a lei
para permitir, em nível federal,
processar traficantes e donos de
escravos; 3) reformar a lei de forma a permitir que a investigação
"siga o dinheiro" para encontrar
quem se beneficia das fazendas,
minas e carvoarias que usam o
trabalho escravo; 4) aumentar o
número de equipes especiais de
combate ao trabalho forçado para, pelo menos, 20; 5) punir severamente corrupção policial e de
funcionários públicos; e 6) deslocar recursos significativos para erradicar a escravidão e preveni-la
por meio de educação pública. Esse gasto corresponde a apenas
uma fração do que o Brasil perde
toda vez que o "New York Times"
publica reportagem sobre o uso
do trabalho escravo em produtos
de exportação.
Folha - A maioria dos escravizados é negra. A escravidão no país
ainda tem um componente racial
determinante?
Bales - Não exatamente. A realidade é que, hoje, as diferenças de
cor provavelmente refletem mais
a sua posição econômica. Há
brancos que são pobres, vulneráveis e estão desesperados por trabalho a ponto de
se verem nessa situação -serão
escravizados também. Mas é uma
indicação o fato
de ser possível ver
diferenças na cor
refletir no bem-estar econômico
dessas parcelas da
população.
Folha - Quantos
escravos existem
no Brasil e no
mundo?
Bales - No mundo, estimo em
cerca de 27 milhões de pessoas;
no Brasil, em até
200 mil escravos.
É um número
pouco preciso. Eu
falei com várias
pessoas que trabalham nessa
área no Brasil.
Obviamente, é
uma atividade
criminal, portanto difícil de mensurar. É apenas
um número de trabalho, não
apostaria minha vida nele.
Folha - Como o sr. chegou a esse
número?
Bales - Nós examinamos diferentes formas de atividade econômica que nós sabemos usar trabalho escravo, como carvoarias,
desmatamento, prostituição e outras. Tentamos estimar quantas
pessoas devem estar em cada uma
dessas áreas. Mas é um número
muito difícil para calcular. Em
termos de comparação: atualmente, estou calculando o número de pessoas escravizadas nos
EUA. E chegamos a algo de 50 mil
a 100 mil pessoas.
Folha - Como ocorre a escravidão
nos EUA? A maioria é estrangeira?
Bales - Sim, a maioria foi introduzida no país via tráfico vindo da
América Latina, da Ásia, do Leste
Europeu e da África. Trabalham
na agricultura, como trabalhadores domésticos, em restaurantes,
em "sweatshops" [pequenas fábricas] e em prostituição.
Folha - Qual é o país em pior situação hoje?
Bales - Isso depende
de como se olha. Em
termos numéricos, é
a Índia. Mas é um
país com 1 bilhão de
pessoas. Há, no entanto, um problema
significativo de escravidão, e muitas vezes
isso é hereditário. Há
famílias que têm sido
escravizadas há várias gerações. Mas há
escravidão em quase
todos os países do
mundo. Acredito que
todos os países europeus tenham escravidão. Suspeito que todos os sul-americanos tenham escravidão, mas não posso
provar isso.
Folha - E proporcionalmente?
Bales -De novo, os
países do sul da Ásia:
Paquistão, Nepal e
Índia. Provavelmente
a Mauritânia tenha a
proporção mais alta.
Folha - O sr. acha que a escravidão pode ser eliminada?
Bales - Vinte e sete milhões de
escravos é um número muito pequeno se comparado à população
mundial, de mais de 6 bilhões de
pessoas. E não precisamos convencer ninguém contra a escravidão nem vencer o argumento econômico, pois se trata de uma atividade ilegal em todos os países. A
escravidão pode ser extinta.
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