São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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ELIO GASPARI

A ekipekonômica protegeu a patuléia aérea

Uma das melhores histórias de sucesso empresarial de 2003 deve ser creditada a um pedaço da ekipekonômica. Ela impediu que os cartórios aéreos e alguns cleptonautas avançassem simultaneamente sobre a poupança da Viúva e o bolso do consumidor. Trata-se do êxito da Gol, uma companhia que saiu do nada em 2001 e hoje, sem ter passado pelo velho e bom BNDES, é considerada a segunda mais rentável do mundo. Conseguiu isso tornando-se sinônimo de passagem barata. Ela cobra R$ 50 (num contrato repleto de condicionantes) pelo vôo no Corujão Rio-São Paulo, contra um preço médio de R$ 48 dos ônibus.
Num ano em que o PIB sofreu uma contração de 0,2%, a Gol aumentou sua fatia do mercado de 17,2% para 19,2%. Transportou 7,3 milhões de passageiros, 51% a mais que em 2002. Sua receita cresceu 106%, e o lucro ficou em R$ 113 milhões limpos. Num período de desemprego, deu serviço a 400 novos trabalhadores. Tendo começado com seis aviões, tem hoje 22 Boeings e 2.500 empregados. A empresa pertence à família Constantino, que opera no ramo de transportes rodoviários. No ano passado, a investidora AIG (ligada à maior seguradora dos Estados Unidos) tornou-se sócia capitalista do negócio.
Quem olha para os aviões da Gol vê neles um tique do sorriso do falecido comandante Rolim Amaro, da TAM. Ele é o patrono da briga contra os cartéis aéreos. Para se ter uma idéia de como o consumidor brasileiro foi e é maltratado pelas empresas, deve-se lembrar que os descontos de milhagem chegaram ao Brasil com 20 anos de atraso . Quando a Varig criou o cartão Smiles, os vôos da ponte aérea (o filé do mercado) ficavam de fora do cálculo das bonificações. Foi Rolim quem implodiu o cartel da ponte.
A Gol surgiu numa época em que as dificuldades financeiras da Varig levaram o governo y otros amigos más a namorar a idéia de uma fusão compulsória com a TAM (com direito a noite de núpcias na suíte imperial do BNDES, com dote de R$ 1,2 bilhão). O ministro da Defesa, José Viegas, chegou a anunciar um plano de reformulação dos céus. Passava pelo salvamento dos maganos da Varig (que demitiram 1.400 trabalhadores) e, é óbvio, por um aumento nas tarifas. Onde? Nas linhas de Brasília, São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Criou-se um sistema de vôos compartilhados pelo qual as duas empresas partilharam os consumidores, e a patuléia ganhou atrasos e tarifas combinadas.
Foi nessa hora que entrou em ação um pedaço da ekipekonômica. Detonaram a reorganização cartorial e a reserva da Varig na suíte do BNDES. A briga ficou tão feia que técnicos do banco foram desaconselhados a comparecer a um debate no Ipea. Falou-se até em pedidos de demissão coletivos, mas isso cheirou a lorota.
O êxito da Gol faz bem à alma. Ela significa uma mudança de paradigma. Em vez de tentar reanimar com dinheiro público um mercado elitista exaurido, abriu-se uma concorrência interessada em trazer a classe B para dentro do jogo.
É possível que uma boa parte dos passageiros da Gol sejam pessoas que não tinham o hábito de viajar de avião. Formavam um mercado oprimido pela ineficiência dos cartéis. Na hora do aperto, essas empresas iam buscar dinheiro no governo. Se o exemplo da Gol der certo, na hora do aperto elas terão que rolar na lama, no mercado.
Um exemplo genérico: a Gol opera em 29 aeroportos. Neles, o mercado cresceu 6,8% entre 2001 e 2004. Em outros 21 aeroportos de tamanho semelhante onde a Gol não opera, o mercado contraiu-se 13,5%. Um exemplo: a linha Londrina-Curitiba era servida por uma empresa que mantinha quatro vôos diários, cobrando R$ 323 pelo bilhete. Em março a Gol entrou na dança, com um vôo a R$ 79. O que fez a concorrente? Criou um vôo de R$ 78,90, mas manteve os outros a R$ 350. Recuou, e hoje cobra R$ 134. A disputa fez com que o número de passageiros nessa linha passasse de 7.000 para 10 mil passageiros/mês.
Pena que não se possa partilhar o êxito da Gol com a Infraero ou com o Departamento de Aviação Civil, onde vivem os sábios da aviação oficial. Há cerca de um ano, a Gol solicitou à Infraero que lhe dê licença para usar os espaços deixados nos aeroportos pela falecida Transbrasil. Algumas dessas áreas, ociosas, viraram espaços baldios. Logo com a Infraero, que deu licença para a instalação de uma butique de relógios dentro de uma sala de embarque habitualmente congestionada, no Santos Dumont. Ao DAC, a Gol pede para voar a Ribeirão Preto e Uberlândia, cidades que, com a ruína do doutor Palocci, perderam 40% do tráfego aéreo. A chegada da Gol, com seus preços, a uma cidade como Maringá criou um mercado de 7.000 passageiros/mês, mas para os sábios do DAC isso parece ser irrelevante. Eles gostam de tarifas altas, aviões vazios, aeroportos com butiques e fila na porta do BNDES.

O PSDB e o PT não mostram suas contas

Os três grandes partidos nacionais, PT, PSDB e PFL, são capazes de tudo, menos de mostrar suas contas aos eleitores antes de lhes tomar os votos. Todos se recusam a determinar que a contabilidade de seus candidatos seja colocada em tempo real na internet. Uma proposta do deputado Chico Alencar, apresentada à direção do PT, foi frontalmente rebatida pelo comissário-tesoureiro Delúbio Soares. Ele classificou a idéia de "ingenuidade". No PSDB, o deputado Luis Carlos Hauly acaba de apresentar uma proposta semelhante à da executiva do partido. No PFL, nem isso.
Até agora, dois candidatos a prefeitos de capital informaram que prestarão contas em tempo real: Luiza Erundina (PSB, em São Paulo) e Raul Jungmann (PPS, no Recife).
Essa relaciona-se primeiro com a entrada do ervanário. Hoje, estima-se que, para cada real que entra pela porta da frente das grandes campanhas, há outro sendo embolsado na porta dos fundos. O comissário Delúbio argumentou que, se as listas dos doadores entrarem na internet, eles serão procurados por outros candidatos.
O problema não está só na entrada do dinheiro. A corrupção se dá, em grande parte, na saída. São as despesas subfaturadas, Soa esquisito que as campanhas de Lula e José Serra tenham gasto apenas R$ 7 milhões cada uma na produção de seus filmes de televisão. A preços do mercado, estima-se que tenham custado o triplo, mas é sempre possível que os marqueteiros Duda Mendonça e Nizan Guanaes tenham conseguido descontos amazônicos junto aos seus fornecedores.
Pelos argumentos do comissário Delúbio, nada impediria que os três grandes partidos revelassem o custo de seus programas de televisão à patuléia a quem pedem votos.
Afinal, se essa patuléia não merece saber quanto custa um filme de TV, por que há de votar no partido que não confia nela?

O patronato vai muito bem, obrigado

O patronato brasileiro não se emenda. Aproveitou o gosto do PT-Federal pelos charutos caros e resolveu bloquear a idéia da criação de representações sindicais nas empresas. Só as admitem em firmas com mais de cem funcionários. Outra proposta, do Patronato do B, é mais dura: só para empresas com mais de cem empregados sindicalizados.
As duas gracinhas revelam que os empresários só querem representações sindicais em 13% das empresas. Na proposta do Patronato do B, essa percentagem cai para menos de 5%.
Há uma relação direta entre a facilidade que o patronato tem para circular no Planalto e a dificuldade que ele impõe aos sindicatos para bisbilhotar suas empresas.

A teimosia de Geisel completa 30 anos

A China tornou-se o terceiro parceiro comercial do Brasil, importando US$ 4,5 bilhões no ano passado. Nessa hora, não custa lembrar que em agosto comemoram-se 30 anos do estabelecimento de relações diplomáticas do Brasil com o governo de Pequim.
À época, isso só foi conseguido pela obstinação do presidente Ernesto Geisel. Ele consultou o Conselho de Segurança Nacional e teve o voto contrário dos três ministros militares. Foi à luta e reverteu dois deles. O ministro do Exército, general Sylvio Frota, continuou contra. (O ministro da Defesa, José Viegas, talvez garanta que esses papéis tenham sido incinerados, junto com os documentos e os corpos dos prisioneiros da guerrilha do Araguaia.)
A China de 1974 não era a de 2004, mas Deng Xiaoping, o pai da sua nova economia, já fora reabilitado e ocupava um lugar de vice-primeiro-ministro. Mao Zedong estava praticamente cego e passava o dia na cama. Zhou EnLai, o grande mandarim do período, tinha um câncer. Ambos morreram dois anos depois.
A argumentação de Geisel em 1974 ainda é útil. Serve para algumas cabeças que se incomodam com lances de política externa concebidos no Brasil: "Se vocês querem ser coerentes, vamos nos isolar, vamos virar mesmo uma colônia dos Estados Unidos".

Ecce companheiro
Durante oito anos o Brasil penou a relação ambígua de FFHH com Deus. Quando uma coisa dava certo (uma supersafra, por exemplo), o mérito era do governo. Quando dava errado (uma seca), a responsabilidade era de Deus. Até hoje não se sabe se FFHH acredita em Deus, mas corre o boato de que Deus não acredita nele.
O grão-tucano nunca se colocou na condição de porta-voz do Padre Eterno. Lula entrou nessa. Ele revelou o seguinte:
"Quando Deus fez o mundo, ele não mediu nenhum esforço para fazer investimento e fazer coisas boas no Brasil".
Quem lhe contou isso, não se sabe.
Lula não reivindica paridade nem isonomia com o Padre Eterno. Ele já avisou que "não tenho os poderes de Deus para fazer os milagres que alguns acham que devo fazer".

Aviso amigo
A alta caciquia do Congresso deu-se a liberdade de aprovar um projeto cujo texto não existia. Nem acordo havia em relação ao seu conteúdo.
Um dia essa maracutaia é desmascarada em todos os seus detalhes, e o Parlamento avacalha-se, desnecessariamente.
Houve uma época em que os deputados tinham o hábito de pedir a colegas que digitassem suas senhas na hora das votações. Surgiu assim a expressão "pianista", que custou um pedaço da biografia a inúmeros parlamentares.
Pensando bem, um congressista votando no lugar de outro é uma anomalia menor do que um plenário aprovando um projeto que não existe.

Grande tocaia
Os bons costumes devem à cúpula do PMDB a implosão da manobra que reelegeria o senador José Sarney e o deputado João Paulo Cunha para as presidências do Senado e da Câmara.
Isso não elimina o fato de que Sarney caiu numa tocaia. Foi a uma reunião discutir projetos tributários e viu-se emparedado numa votação que derrotou por 12 votos a 2 sua pretensão continuísta.
Noves fora o PMDB, Sarney convenceu-se de que a tocaia foi montada por dois coronéis petistas: o senador Aloizio Mercadante e o mestre-comissário Luiz Gushiken. Mercadante detesta Sarney (e vice-versa). Gushiken detesta o comissário José Dirceu e um pedaço do gênero humano, mas não faz nada contra o interesse de Lula.
Emboscado e ferido, só resta a Sarney ir ao baú de romancista e pegar a navalha de ouro incrustada com pedras preciosas, onde está a esmeralda que faísca, como os olhos de Saraminda.

Lula 2054
O professor Waldir Quadros, da Unicamp, concluiu que Lula ficará no poder até 2054. Meio século será o tempo necessário para que o companheiro cumpra a sua promessa de dobrar o valor real do salário mínimo. Até agora o PT-Federal produziu um aumento real de 4,1%.
Brincando de números, Lula e sua ekipekonômica devem tomar cuidado. Se a contração dos ganhos dos 10% mais pobres continuar na faixa dos 5% ao ano, ele acaba com a renda da choldra antes de 2020. Ou seja, quando o valor real do salário mínimo tiver dobrado, não haverá escumalha disponível para recebê-lo.


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