São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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ELIO GASPARI

Lula-Simon, por que não?

As chances de que o PMDB e o PT venham a se aliar podem ser poucas, mas são instigantes. Uma chapa Lula-Pedro Simon é coisa para refletir. Na terça-feira, o senador José Sarney tratou desse assunto numa conversa de duas horas com o presidente do PT, deputado José Dirceu, que partiu dela para outro encontro. Nesta semana Lula deve se encontrar com Pedro Simon em Porto Alegre. Simultaneamente, as lideranças petistas em diversos estados começaram a conversar com o PMDB local.
Uma chapa Lula-Simon pode ter a carga de virada histórica de alguns momentos decisivos da política brasileira, como o salto de FFHH em direção ao PFL, em 1994, ou o entendimento de Tancredo Neves com Antonio Carlos Magalhães, em 1985. São momentos em que a política sobrepuja a marquetagem, indo buscar no inesperado a energia necessária para romper estruturas que parecem blindadas, mas podem estar caducas.
Para limpar o curso do raciocínio, convém tratar logo do fator Orestes Quércia. Em 1994 ele atacou Lula dizendo que o petista "nunca dirigiu um carrinho de pipoca". Lula respondeu: "Nunca dirigi um carrinho de pipoca, mas também nunca roubei pipoca". Admita-se que os dois tinham razão. O quercismo foi uma peste que assolou São Paulo, mas, enquanto seu titular acena com uma aliança ao PT, seus santos menores já se aliaram aos demais candidatos. O sucessor de Quércia no governo de São Paulo, Luiz Antonio Fleury, está no PTB da coligação de Ciro Gomes. O vice de Fleury, Aloysio Nunes Ferreira, tornou-se um tucano tardio e ocupou o Ministério da Justiça de FFHH. Luís Carlos Santos, que durante o governo Quércia perseguia a diligência administrativa numa poderosa secretaria, foi o ministro da articulação política durante o esforço da votação da emenda constitucional que permitiu a reeleição de FFHH, em 1997.
Se o PMDB tem duas bandas, quem fez uma opção pela liderança de Geddel Vieira Lima e Renan Calheiros foi o Planalto. Foi com essa banda que FFHH moeu a candidatura de Itamar Franco em 1998.
Uma chapa Lula-Pedro Simon leva a perguntas que não podem ser respondidas de bate-pronto: até que ponto o PT está se aliando ao grande MDB de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Mário Covas? O que faria cada um deles hoje? Naquele MDB, Fernando Henrique Cardoso era um ilustre coadjuvante. Mesmo assim, o que faria o professor? (Em 1978, com o apoio de Lula, foi candidato ao Senado contra Montoro e deu-lhe combate tenaz, ainda que inútil.)
Se Lula anunciasse que ofereceria o Ministério da Integração Nacional ao senador Ney Suassuna, as respostas seriam fáceis. Pela sua biografia, Pedro Simon tem direito ao benefício da dúvida. Aliado ao PT, teria a capacidade de liderar um PMDB mais parecido com ele? Cada um fica com sua opinião e com suas dúvidas, mas não é razoável recriminar o PT por buscar um caminho que o PSDB cultiva e defende com unhas, dentes e cofres. Cofre o PT ainda não tem para oferecer.

A marquetagem é uma saúva

Ou José Serra acaba com a marquetagem, ou a marquetagem acaba com José Serra. Pode-se entender que um candidato repita bordões para fixar posições diante do eleitorado, mas seus aliados obrigam-se a respeitar a opinião pública. Nos últimos dias, virou moda atacar Lula com o argumento de que ele diz uma coisa na televisão enquanto seu partido praticou outra no Congresso (e ele nos palanques). Faz até sentido, mas veja-se o que aconteceu na quinta-feira, quando Serra e o prefeito Cesar Maia abraçaram-se afetuosamente no Rio de Janeiro.
O prefeito disse que chegara a hora de "levantar o véu da hipocrisia" e proclamou: "Somos a continuação do governo FernandoHenrique Cardoso".
Hipocrisia de quem, grande chefe branco? Há dois meses, no dia 3 de abril, Cesar Maia disse o seguinte: "O povo brasileiro não quer que o próximo presidente da República seja a cara do presidente Fernando Henrique Cardoso. (...) A candidatura de Serra, à medida que vai se transformando na cara de Fernando Henrique, vai se inviabilizando".
Previu que Serra renunciaria em maio, e os astros quiseram que subisse no seu palanque antes que o mês terminasse. Cesar Maia não diz uma coisa na televisão e faz outra na administração. Ele diz a coisa e seu contrário como se uma e outra não tivessem significado.
O prefeito do Rio é capaz de dizer coisas incríveis. Referindo-se ao tipo de Réveillon que pretende organizar na cidade, definiu-o assim: "Europeu, seguro, clássico, sofisticado, vienense, bigbeniano, brussélsico e que se apoteotiza tropical". Podia ter dito que a candidatura de Serra é um construção eifellesca que se apoteotiza global e municipáltica. Podia também revelar quem andava coberto pelo "véu da hipocrisia".

Uma boa notícia, que precisa ser copiada

Credito:Burgoyne Diller+Alex Freitas
A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está montando um projeto para financiar computadores para os professores da rede pública. Coisa para ser copiada por todo mundo, inclusive pelas escolas da rede privada. Conforme revelaram os repórteres Renata Cafardo e Marcos de Moura e Souza, cada computador será comprado a preço de custo e deverá sair por algo como R$ 600. A Viúva entrará com R$ 300, e o professor pagará a diferença. Admitindo que sejam vendidos 120 mil computadores aos 230 mil professores de São Paulo, a conta ficará em R$ 36 milhões, menos de 20% do que o governo federal gastou em publicidade no ano passado.
Santa despesa, abre o caminho para uma grande discussão. Se nos Estados Unidos e na Inglaterra os professores e alunos podem comprar computadores e programas a preços mais baixos, é o caso de perguntar por que não existem mecanismos semelhantes no Brasil. A primeira resposta é simples: esse benefício seria transformado numa grande fraude.
As empresas americanas não perdem dinheiro com os descontos. Expandem o mercado e formam clientela. Se isso não acontece no Brasil, é porque na Belíndia é melhor negócio vender computadores caros aos belgas do que conversar a respeito da chegada dessas máquinas à casa dos indianos. Os fabricantes ganham incentivos fiscais e proteção tarifária à custa de toda a sociedade, mas só tratam com um pedaço dela.
Nos Estados Unidos, a discussão do acesso aos computadores pelos estudantes já está noutro patamar. Pelo menos quatro universidades estão discutindo a universalização dos laptops, permitindo que cada estudante possa se ligar à internet em qualquer hora do dia. Se FFHH for para Harvard, verá como funciona um país sem lei de informática nem tarifas extorsivas para a importação de computadores. Comprará o seu, baratinho, como gosta.

Encrenca
A partir de amanhã o PTB e o PDT, partidos que apóiam o candidato Ciro Gomes, dispõem de 40 minutos de rede nacional de televisão. Trata-se de um tempo destinado ao partido, não aos candidatos. Se Ciro só puder usar o crédito do PPS ao qual é filiado, seus minutos serão apenas dois. Seus aliados sustentam que proibir um candidato apoiado pelo PTB de falar num horário do mesmo PTB é uma forma indireta de amordaçá-lo. Vale a pena informar que vem encrenca por aí. O que acontecerá se Ciro for à TV calado e, num programa qualquer, começar a falar? Vão tirá-lo do ar? Fica feio, muito feio.

Banco da preguiça
Alguém precisa avisar aos hierarcas do Banco do Brasil que trabalho não faz mal à saúde. Ele mantém uma agência no aeroporto do Galeão, essencial para que os contribuintes paguem seus tributos à alfândega. Noutro dia aconteceu o seguinte: um cidadão chegou às 23h, num vôo de Miami, e o fiscal taxou algumas de suas compras. Na maior elegância, ele se dispôs a pagar. A quem? O banco estava fechado, mas isso não era tudo. A Alfândega não podia fazer a cobrança com a taxa do dólar fiscal daquele dia, já que o pagamento seria feito no dia seguinte. Teve que esperar até meia-noite. Conseguiu a papeleta, foi para casa e voltou no horário do expediente do BB.
Na outra ponta do horário, apesar de existir um vôo da Varig que chega às 5h50, o BB não tem hora certa para abrir a agência. Às vezes o faz às 7h, mas há dias em que isso só acontece às 9h.
Antes que se culpe os funcionários da agência, vale lembrar que eles não têm nada a ver com isso. O absurdo é coisa de chefias ineptas.
A Receita Federal, por exemplo, mantém no Galeão três aparelhos de raios X para inspeção de malas. Dois estão quebrados. O outro funciona precariamente.

Nós e eles
Há dois anos descobriu-se que FFHH e outros barões de Brasília continuavam listados como foragidos na rede de computadores Infoseg, do governo federal. (Ela custou R$ 15 milhões à Viúva.)
Agora percebeu-se que em vez de rever a lista, produzida durante a ditadura, os grão-tucanos limitaram-se a tirar seus nomes. Há alguns dias uma senhora que militou na Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, foi tirar uma nova carteira de identidade num posto de atendimento em São Paulo. Teve a carteira velha confiscada e foi instruída a voltar na semana seguinte. Anistiada depois de presa e banida, seu nome continuava no computador.

ENTREVISTA

Aloysio Campos da Paz Jr.
(66 anos, cirurgião-chefe da rede Sarah de hospitais)

-O Sarah de Brasília foi considerado o melhor hospital público do país. A que o senhor atribui esse sucesso?
-Ao nosso regime jurídico e à nossa estrutura. O Congresso nos deu a possibilidade de funcionar com dotações orçamentárias. Nossos funcionários trabalham em regime de dedicação exclusiva, sem estabilidade. Não há na rede Sarah o médico que tem emprego no hospital e consultório mais adiante. Também não há porta especial para os pacientes de planos de saúde. A rede Sarah tem hospitais em cinco estados. São mil leitos, com 170 médicos. Neste ano nossa dotação é de R$ 230 milhões. Não temos serviços terceirizados. Um médico entra no Sarah ganhando em torno de R$ 6.000 e um cirurgião pós-graduado, com especialização no exterior, recebe R$ 14 mil. Esse é meu salário. Acredito que os nossos custos estejam 25% abaixo da média da rede pública. É possível que a rede Sarah seja o que é porque as coisas são simples: a fonte de recursos é uma só, o emprego é um só e a porta dos pacientes também é uma só. As pessoas que trabalham no Sarah gostam da profissão e gostam de receber pacientes.

-O senhor começou a organizar o Sarah há quase 30 anos. Passou o tempo, ele virou uma rede e acumulou prestígio. A que o senhor atribui o fato de ninguém ter tentado replicar essa sua experiência?
-Ao corporativismo e à sua capacidade de embutir o medo do incerto. Muita gente prefere ganhar mal, trabalhando num hospital medíocre, inserindo-se num processo insidioso, com a ilusão da estabilidade. Preferem-se as regras fixas, mesmo que isso leve muitos médicos a capturar pacientes na rede pública, levando-os para seus consultórios particulares. Felizmente não nos regemos pelas regras do SUS, que remunera os procedimentos. Quanto mais você faz, mais você ganha, e acabam fazendo cesariana em homem. É possível que a experiência do Sarah não seja replicada por falta de liderança. Um jovem médico pode até acreditar num projeto desses, mas que garantia você lhe dá de que daqui a dois anos o hospital não mudará de direção? Os jovens só se espelham nas pessoas que fazem o que dizem. Eu fico 15 horas por dia no hospital.

-O senhor acha que os planos de saúde privados são uma solução ou um problema?
-São as duas coisas, mas a saúde pública brasileira só tem uma solução: é a sociedade ir buscar de volta o dinheiro dos seus impostos. Essa história de atendimento gratuito, tanto no Sarah quanto na rede pública, é falsa. O contribuinte recebe em serviços médicos a contrapartida dos impostos que paga. Se você abdica desse direito, o serviço apodrece. Foi assim que apodreceu a educação e é assim que apodrece a saúde. Os melhores médicos do Brasil são funcionários públicos. Como é que se entende um hospital com grandes médicos e mau serviço? É a estrutura pérfida somada à falta de liderança e aos conflitos de interesses. Os aparelhos de ultra-som dos hospitais públicos vivem quebrando. São aparelhos relativamente baratos, e o paciente, reclamando do hospital público, vai fazer o exame no consultório privado. Já no caso de uma ressonância magnética (máquina cara), o paciente vai ao consultório e descobre que o médico é tão bonzinho que só vai lhe cobrar a consulta, pois tem como conseguir o exame na rede pública. A sociedade tem que ir buscar seus impostos de volta. Isso pode acontecer com a participação dos médicos, porque ninguém estuda seis anos numa faculdade para ficar pulando do emprego para o consultório nem para passar uma parte do seu tempo discutindo questões financeiras.



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