São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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NO PLANALTO
Dados sigilosos da Receita vazaram do Serpro

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Investigação sigilosa do governo confirmou o impensável: é mesmo da Receita Federal aquele banco de dados confidencial que vigaristas vendiam em São Paulo, no início do ano, pela pechincha de R$ 4.000. Os dados vazaram do Serpro.
Não há em toda a história do Fisco nacional vestígio de semelhante vexame. A delinquência fez barba, cabelo e bigode. Rompeu-se o sigilo fiscal de cerca de 11,5 milhões de brasileiros -7,6 milhões de pessoas físicas e 3,9 milhões de empresas.
As informações surrupiadas deixam o contribuinte nu. Revelam-lhe o fundo da alma: renda/ faturamento, ocupação/ramo de atividade, patrimônio, endereço etc.
Pense num nome. Seu pai, sua tia, FHC, Vera Fischer, Ronaldinho, Zé das Couves, qualquer um. Se declarou imposto no ano de 96, foi vítima da pirataria praticada nos computadores do Serpro.
Em meio ao desastre, recolhe-se uma má notícia -sim, mais uma- e uma informação alentadora. Primeiro a má notícia: ainda não foram identificados os responsáveis pelo crime. Agora, a informação que traz alento: há na Receita e no Serpro gente empenhada na caça aos culpados. A busca foi transformada em questão de honra.

Embora inconclusa, a apuração já reuniu detalhes de arrepiar. Tem-se como certo o seguinte:
1) A malfeitoria foi executada por funcionários do próprio Serpro. Funcionários graúdos. Só a elite técnica da empresa dispõe de senhas com acesso ao tipo de dado que ganhou as ruas;
2) As informações foram surrupiadas de um arquivo com o sugestivo nome de "Cadval", abreviação de "cadastro de valor";
3) Os dados são do Imposto de Renda de 96. Foram roubados no início de 97, entre o final de janeiro e o começo de fevereiro. O período sob investigação é de dez dias;
4) O roubo foi praticado num computador instalado no prédio do Serpro em São Paulo;
5) Utilizou-se programa desenvolvido no Rio de Janeiro;

Trabalha-se ainda com as seguintes pistas:
1) O crime não foi obra solitária. Há pelo menos dois envolvidos. Pode haver mais;
2) A cópia pirata deve ter sido feita em arquivo magnético, um cartucho. O material era farto demais para ser copiado em disquete;
3) O banco de dados pode ter pulado o muro do Serpro em transmissão via modem;
4) Há ainda a hipótese "Cavalo de Tróia", como a apelidaram no Serpro. Os dados sigilosos teriam sido, neste caso, injetados clandestinamente no meio de um dos tantos arquivos que cruzam os portões do Serpro todos os dias, com direito a protocolo de saída;
5) Empresas privadas compraram os CDs das mãos de vigaristas. A Polícia Federal está a um passo de provar o envolvimento de uma dessas empresas. É estrangeira e bastante conhecida.

Os CDs da Receita têm serventia variada. Prestam-se à confecção de mala direta para potenciais clientes de empresas. Em mãos bandidas, também podem servir para a seleção de candidatos a roubos e sequestros.
Chegou-se aos CDs por um descuido da malandragem. Um sujeito oferecia, em anúncios de jornal, a relação dos números de telefones sigilosos de São Paulo, esses que os donos pedem que sejam excluídos da lista. A Telefônica denunciou e a polícia civil paulista abriu, no final do ano passado, o inquérito número 1257/99.
Em janeiro de 2000, simulando interesse pelo material, policiais disfarçados prenderam Jefferson Festa Perez. Descobriu-se que ele fazia a festa não só com os números da Telefônica. Oferecia também os CDs da Receita.
No princípio, o Fisco duvidou que os dados fossem seus. Tinha lá as suas razões. Havia baixado, antes do furto, normas que aperfeiçoaram o sistema de senhas da repartição. Por curiosidade, Everardo Maciel pedira, em meados de 96, que verificassem se alguém havia bisbilhotado a declaração de rendimentos dele. Não deu outra.
A vida financeira de Everardo fora perscrutada. Chegou-se ao nome do curioso graças à senha, um rastro que o fiscal é obrigado a deixar sempre que entra nos arquivos eletrônicos do Leão. Inquirido, o fiscal xereta disse, entre outras coisas, que era um admirador do secretário da Receita.
Abriu-se um inquérito. E verificou-se que, na verdade, o fiscal cultivava outras admirações. Ele vasculhara também os dados de Roberto Marinho, de Antônio Ermírio de Moraes, de Ronaldinho e de Romário.
Daí a decisão de reforçar a segurança. Estipulou-se, de resto, uma escala de punições. O chamado "acesso imotivado", apelido oficial da bisbilhotice sem causa, pode levar um fiscal à demissão.
Fustigada, a Receita pediu à polícia paulista cópias dos CDs. Desejava desmentir que contivessem dados sob sua guarda. A resposta da polícia foi negativa. Após alguma insistência, terminou obtendo o material na Telefônica.
O Serpro pediu à Receita que buscasse nos CDs obtidos em São Paulo 300 informações. Coisas como nomes, endereços etc. Verificou que eram idênticos aos que guardava em seus arquivos. Analisa daqui, verifica dali, chegou-se à declaração de 96. Refinando a apuração, concluiu-se que o vazamento se deu no início de 97, como já mencionado.
Tenta-se agora refazer a picada aberta pelos larápios nas máquinas do governo. Não é tarefa simples. Num único dia de trabalho, o pessoal do Serpro realiza algo como 14 milhões de operações. Espera-se fisgar os criminosos pela senha.
O governo gostaria de fechar a apuração até o final de julho. Sabe que deve uma boa explicação à ralé. Sabe também que, depois de mais de quatro meses de apuração, não fica bem vir a público sem os nomes dos culpados. Isso só aumentaria o vexame.
Um vexame, diga-se, que talvez pudesse ter sido evitado. O Serpro preparou-se com esmero para os ataques externos. Dispõe até de esquadrão anti-hacker. Mas descuidou do inimigo infiltrado em sua própria trincheira.
Um exemplo: quando um funcionário deixava o Serpro, continuava tendo acesso aos computadores da empresa. Só depois de três, quatro dias, cortavam-lhe a senha. Só de 97 para cá, 2.500 funcionários deixaram a empresa.
Arrombada a porta, as senhas são agora eliminadas simultaneamente ao afastamento. Decidiu-se também exigir que, além da senha, o funcionário se submeta a outros dois filtros: terá de usar um cartão magnético e passar o polegar num leitor digital, para confirmar a identidade.
O Serpro está comprando cartões magnéticos por míseros R$ 10 a unidade. Cada leitor digital custa pouco mais de R$ 500. A compra fora programada havia três anos. Mas foi sendo empurrada com a barriga.
A conta pelo descuido está sendo apresentada agora. Sabe-se o que o Serpro e a Receita perderam: um belo naco de confiabilidade, patrimônio raro, difícil de ser recuperado. O prejuízo dos contribuintes não é contabilizável.


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