São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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ANÁLISE

Crítico literário afirma que Lula é obrigado a fazer política de compromisso, mas PT guarda "possibilidades futuras de radicalização"

Pobres vão sentir falta de Marta, diz Candido

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Durante algum tempo, o PT terá que ser um partido mais rotineiro", diz o mais importante crítico literário brasileiro, Antonio Candido, 86, questionado sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Um dos principais nomes da intelectualidade petista, o autor de "Formação da Literatura Brasileira" afirma que a prefeita Marta Suplicy (PT), derrotada domingo nas urnas, "cumpriu o seu dever à luz dos princípios do partido". "Os menos favorecidos da cidade de São Paulo vão sentir muito a falta da Marta."
E o governo Lula, tem cumprido o seu "dever" petista? "O PT está fazendo muita coisa boa. Mas não está fazendo tudo que poderia fazer", declara. "Se no Brasil, neste momento, não for possível outra política senão a de compromisso, prefiro que seja feita pelo PT do que por outro partido", diz, e justifica: "Por [ele] ter, no seu bojo, possibilidades futuras de radicalização".
Candido também rebate a tese do prefeito eleito de São Paulo, José Serra (PSDB), de que os tucanos seriam os verdadeiros defensores dos valores republicanos no país. "O republicanismo no Brasil foi sempre o negócio das elites. De modo que é muito fácil virar o argumento."
 

Folha - Qual a sua avaliação da derrota da prefeita Marta Suplicy?
Antonio Candido -
A mim, como petista, não interessa apenas a vitória. Interessa indagar se o mandatário cumpriu o seu dever à luz dos princípios do partido. Creio que a prefeita Marta cumpriu o dever dela como petista, e isso para mim é muito confortador. Porque ela deu uma orientação democrático-popular ao governo. Não precisa nem enumerar as medidas que beneficiaram os mais pobres -tanto que teve uma votação muito expressiva nas áreas mais pobres da cidade.
É claro que ela não pôde fazer tudo que gostaria, e sobretudo tudo que precisaria fazer, porque uma cidade como São Paulo é dificílima de administrar. Mas deixou bem claro qual era a linha do que faria se reeleita. Isso é uma garantia de futuro. Para mim, uma garantia de que seria uma administração de acordo com os princípios do meu partido.
Os menos favorecidos da cidade de São Paulo vão sentir muito a falta da Marta.

Folha - Esses mesmos princípios petistas também estão sendo seguidos na esfera federal?
Candido -
Essa é uma questão mais complicada. Sou um petista muito fiel. Tenho muita confiança nas possibilidades futuras do PT, porque é um partido raro -é um partido em grande medida socialista, mas um partido socialista muito pluralista, o que não é freqüente. Os partidos socialistas que arriscam o pluralismo geralmente se desfiguram. Penso que, sendo um país como o Brasil, o fato de o PT ser pluralista não vai desfigurá-lo. Pelo contrário, vai permitir que ele se adapte a diversas situações.
As injunções internacionais são tão poderosas, os compromissos que assumimos no passado tão impositivos, que é muito difícil um governo que não é revolucionário romper com esse estado de coisas. Imagino que, durante algum tempo, o PT terá que ser um partido mais rotineiro. Já fez muita coisa no terreno da economia solidária, renda mínima, política internacional; acho que o PT está fazendo muita coisa boa. Mas não está fazendo tudo que poderia fazer. Se no Brasil, neste momento, não for possível outra política senão a de compromisso, prefiro que seja feita pelo PT do que por outro partido.

Folha - Por quê?
Candido -
Por ter, no seu bojo, possibilidades futuras de radicalização. Como é pluralista... Imagine um leque que se abre. Ele é um leque aberto, o PT. Vai desde possibilidades de soluções mais radicais até possibilidades de soluções de contemporização. Isso permite um grande realismo.

Folha - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o PT está refazendo o "patrimonialismo" no Brasil, "dando-lhe um caráter de clientelismo mais partidário". O sr. vê patrimonialismo no PT?
Candido -
Não está na linha ideológica do PT o patrimonialismo, que é uma praga dos países subdesenvolvidos. Uma praga muito difícil de ser sanada porque, como a pobreza é muito grande, as pessoas têm a idéia do Estado como um pai de todos. Não creio que o presidente Fernando Henrique tenha razão.

Folha - O prefeito eleito, José Serra, fala do PSDB como representante do republicanismo no Brasil, insinuando que o PT não o é.
Candido -
O republicanismo no Brasil foi sempre o negócio das elites. De modo que é muito fácil virar o argumento. A República no Brasil foi sempre a república das elites. De vez em quando há momentos em que a república das elites é quebrada, realmente de maneira pouco democrática, como foi a tentativa no tempo de Getúlio Vargas. O poder quase ilimitado das oligarquias sofre restrições, mas infelizmente por meios não democráticos.
O PT é o primeiro partido brasileiro não subordinado a organizações internacionais que vai desenvolver os fermentos de radicalidade sufocados na tradição republicana brasileira.


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