São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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ARTIGO

Quem derrotou Marta? O governo Lula

FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mapa partidário que emerge das eleições municipais é azul-amarelo dos tucanos combinado com o vermelho (ainda é?) petista, aqui e ali pontuado por outras cores -que não sei quais são, pois sou daltônico e confundo o que não tem boa definição-, de PMDB, PFL, PSB, PPS e PDT. O primeiro se esvai a cada eleição, o segundo experimentou a acachapante derrota de ACM, seu cacique maior, e os demais ganham só para sobreviverem. A imagem que uso é do cientista político Carlos Novaes, no próprio domingo das eleições, na TV Cultura, utilizando didáticos mapas.
O resultado mais geral aponta para a chamada convergência para o centro do espectro político. Uma espécie de partido único, no estilo partido-ônibus, em que todos se parecem, com as diferenças regionais e, no caso municipal, locais. Mas sem nenhuma identidade maior do ponto de vista das próprias histórias partidárias. O caso mais exemplar foi o apoio de Maluf a Marta, que não foi seguido pela maioria dos malufistas e envergonhou eleitores da prefeita.
Cientistas políticos mais competentes e ponderados que este articulista acham isso bom: a política torna-se previsível e se consolida a via institucional. Outros apontam essa convergência como a tradução da irrelevância da política e assinalam que o sistema partidário é o centro dessa irrelevância -bloqueia qualquer outra forma de política e não representa ninguém. Prefiro essa última interpretação, pois vejo uma crise da representação, que afeta o poder da cidadania, pois esta tem na política uma das poucas possibilidades de contornar e superar as assimetrias de poder que o sistema econômico cria e reitera. Quando a política torna-se inteiramente consensual, deixa de existir como diferença, dissenso.
A sociologia política já havia prestado atenção a essa convergência dos dois principais partidos. De um lado, uma poderosa erosão de suas bases sociais, pela reestruturação produtiva, desemprego e informalização, caso das bases do PT, de outro lado, o definhamento das classes médias -no plural-, que vem experimentando um longo achatamento salarial e de rendas. No fundo, o resultado da longa estagnação da economia brasileira, já lá se vão vinte anos desde a quebra do ímpeto desenvolvimentista no começo dos anos 80. No caso social-democrata clássico, a convergência para o centro se dá como resultado do êxito; no caso da periferia brasileira, a convergência para o centro se dá pelo fracasso.
Um dos paradoxos do resultado é que o PT é o grande vitorioso em termos quantitativos, mas também o grande perdedor, sobretudo com as derrotas em São Paulo e Porto Alegre, que se estende para Curitiba, grandes cidades gaúchas, muitas do rico cinturão do interior de São Paulo e Santos no litoral. Grande perdedor pela óbvia centralidade da capital paulista, o quarto orçamento nacional, sede das principais empresas, matriz do PT. Em Porto Alegre, pelo longo predomínio petista, 16 anos de boas administrações, rica em inovações políticas com o Orçamento Participativo como uma pedagogia para a hegemonia, conhecendo as entranhas do Estado moderno, catapultando a capital gaúcha como sede do Fórum Social Mundial. É uma pena.
Quem derrotou Marta e Pont? A primeira, com uma administração aprovada por 48% dos eleitores, que confirmaram sua confiança dando-lhe 45% dos votos. Mas com desemprego na casa dos 18%, uma informalização que beira os 60% da PEA, juros escorchantes numa economia urbana que se move sobretudo pelo crédito, enorme contingente de funcionários públicos com salários achatados e perda de confiança na política do PT devido aos assaltos contra a Previdência Social. Quem derrotou Marta? O governo Lula. Todos o sabem, mas não querem dizer. Pont ficou na defensiva, e, para além das peculiaridades da política gaúcha, como a eleição de Rigotto e a fratricida disputa interna do PT, a política econômica de Lula era indefensável, sobretudo para uma sigla que, mais no Rio Grande do Sul do que em qualquer outro Estado do país, derrotou inúmeras vezes a forte oligarquia gaúcha e seus mass media. Ali, onde o PT velho de guerra foi à luta e rebelou-se contra a orientação antipolítica de sua direção, deu Luizianne em Fortaleza, quase deu Pellegrino em Salvador, e Pont diminuiu muito a diferença no final.
A longue durée autoritária brasileira prega mais uma peça à nossa modernidade. O PT, nascido nos Estados ricos, portador do futuro, quando se expande nacionalmente, ganha nos Estados pobres e perde nos ricos. Mais que simples troca geográfica, o que ocorre é o precoce envelhecimento político do partido nascido para reformar o país; não se expandiu a modernidade, o atraso a engoliu. Raymundo Faoro não gostaria de ter visto essa regressão.
As conseqüências imediatas do esquema azul-amarelo/vermelho não se darão na política econômica. Mesmo porque esta se ancora no acordo de Lula com Bush, pelo qual o primeiro não iria para a esquerda e Bush não incluiria o Brasil no "eixo do mal". As nomeações de Meirelles e da equipe de Palocci, que este sequer conhecia, depõem em favor dessa tese. Então, a política econômica é intocável, mesmo porque qualquer movida aí dará na profecia de Mário Amato: a saída será o aeroporto.
Será nas lutas internas do PT com vistas à eleição de governador em 2006 a principal e imediata conseqüência. Marta perde, mas sai com cacife suficiente para voltar à disputa, e seus amigos/inimigos internos já estão se movendo. Uma outra conseqüência se dará no plano das relações dos partidos que fazem a sustentação do governo Lula. Novas faturas serão cobradas com as vitórias, e aumentará a instabilidade do governo. Quanto aos tucanos, como é óbvio aumenta o cacife de Alckmin, e baixa, de imediato o de FHC, que deveria aprender com Camões: outro valor mais alto se alevanta. Serra ficará à espreita, mas será carta decisiva.
Dá para prever algo para 2006? Todos se acautelam com o conselheiro Acácio: é preciso esperar. Mas dá para prever: é a reeleição de Lula que ficou comprometida. Se este não realizar algo transformador, que se traduza em recuo das altas taxas de desemprego e numa sustentada expansão da economia, que não se resuma ao agronegócio, pois este não comove as cidades, pode esperar pela reprovação em 2006. A eleição do Serra já deu mostras do que pode se montar: não à toa, Cesar Maia, que no fundo é tucano e poderá ser estratégico em 2006, veio a São Paulo para ensaiar a nova aliança. O PSDB não tem nenhuma figura excepcional, nenhum líder carismático. Mas terá fortíssima máquina. Ninguém ganha eleição no Brasil sem o voto de São Paulo e do Rio.
Elas têm não só importância quantitativa, mas sobretudo qualitativa: são os jornais e TVs de São Paulo e Rio que são aguardados em outras cidades. São eles que dão a pauta. São os cartoons e caricaturas dos grandes chargistas que levaram FHC ao ridículo, com sua postura arrogante e indiferente; com Malan entrando no ministério e dizendo a um mendigo que lhe estendeu a mão que não tinha trocado. Com Zé Simão apelidando FHC de Maria Antonieta do Planalto. Lula já começou a descer a rampa da simpatia, para ser caricaturado como deslumbrado, um fradinho -que falta faz o Henfil!- que desliza sorrateiramente do simpático ao perverso.
A política brasileira deu um giro não virtuoso, pois à centralidade econômica de São Paulo sobrepôs-se a centralidade política. Parece uma volta à República Velha. Quem perde com isso é a cidadania, pois a política foi a invenção magistral para inverter a assimetria de poder que governa a economia. Quando esse poder da política é anulado, a convergência dos dois poderes é um risco para a democracia e para a sua promessa de igualdade.


Francisco de Oliveira, 70, é sociólogo, professor aposentado da USP e fundador do PT, com o qual rompeu em 2003

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