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ARTIGO
Quem derrotou Marta? O governo Lula
FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O mapa partidário que emerge
das eleições municipais é azul-amarelo dos tucanos combinado
com o vermelho (ainda é?) petista, aqui e ali pontuado por outras
cores -que não sei quais são,
pois sou daltônico e confundo o
que não tem boa definição-, de
PMDB, PFL, PSB, PPS e PDT. O
primeiro se esvai a cada eleição, o
segundo experimentou a acachapante derrota de ACM, seu cacique maior, e os demais ganham
só para sobreviverem. A imagem
que uso é do cientista político
Carlos Novaes, no próprio domingo das eleições, na TV Cultura, utilizando didáticos mapas.
O resultado mais geral aponta
para a chamada convergência para o centro do espectro político.
Uma espécie de partido único, no
estilo partido-ônibus, em que todos se parecem, com as diferenças
regionais e, no caso municipal, locais. Mas sem nenhuma identidade maior do ponto de vista das
próprias histórias partidárias. O
caso mais exemplar foi o apoio de
Maluf a Marta, que não foi seguido pela maioria dos malufistas e
envergonhou eleitores da prefeita.
Cientistas políticos mais competentes e ponderados que este
articulista acham isso bom: a política torna-se previsível e se consolida a via institucional. Outros
apontam essa convergência como
a tradução da irrelevância da política e assinalam que o sistema
partidário é o centro dessa irrelevância -bloqueia qualquer outra
forma de política e não representa
ninguém. Prefiro essa última interpretação, pois vejo uma crise
da representação, que afeta o poder da cidadania, pois esta tem na
política uma das poucas possibilidades de contornar e superar as
assimetrias de poder que o sistema econômico cria e reitera.
Quando a política torna-se inteiramente consensual, deixa de
existir como diferença, dissenso.
A sociologia política já havia
prestado atenção
a essa convergência dos dois principais partidos.
De um lado, uma
poderosa erosão
de suas bases sociais, pela reestruturação produtiva, desemprego e
informalização,
caso das bases do
PT, de outro lado,
o definhamento
das classes médias -no plural-, que vem
experimentando
um longo achatamento salarial e
de rendas. No
fundo, o resultado da longa estagnação da economia brasileira, já lá se vão vinte
anos desde a quebra do ímpeto
desenvolvimentista no começo
dos anos 80. No caso social-democrata clássico, a convergência
para o centro se dá como resultado do êxito; no caso da periferia
brasileira, a convergência para o
centro se dá pelo fracasso.
Um dos paradoxos do resultado
é que o PT é o grande vitorioso em
termos quantitativos, mas também o grande perdedor, sobretudo com as derrotas em São Paulo
e Porto Alegre, que se estende para Curitiba, grandes cidades gaúchas, muitas do rico cinturão do
interior de São Paulo e Santos no
litoral. Grande perdedor pela óbvia centralidade da capital paulista, o quarto orçamento nacional,
sede das principais empresas, matriz do PT. Em Porto Alegre, pelo
longo predomínio petista, 16 anos
de boas administrações, rica em inovações políticas com o
Orçamento Participativo como uma pedagogia para a hegemonia, conhecendo
as entranhas do Estado moderno, catapultando a capital
gaúcha como sede do
Fórum Social Mundial. É uma pena.
Quem derrotou
Marta e Pont? A primeira, com uma administração aprovada por 48% dos eleitores, que confirmaram sua confiança
dando-lhe 45% dos
votos. Mas com desemprego na casa dos
18%, uma informalização que beira os 60% da PEA,
juros escorchantes numa economia urbana que se move sobretudo pelo crédito, enorme contingente de funcionários públicos
com salários achatados e perda de
confiança na política do PT devido aos assaltos contra a Previdência Social. Quem derrotou Marta?
O governo Lula. Todos o sabem,
mas não querem dizer. Pont ficou
na defensiva, e, para além das peculiaridades da política gaúcha,
como a eleição de Rigotto e a fratricida disputa interna do PT, a
política econômica de Lula era indefensável, sobretudo para uma
sigla que, mais no Rio Grande do
Sul do que em qualquer outro Estado do país, derrotou inúmeras
vezes a forte oligarquia gaúcha e
seus mass media. Ali, onde o PT
velho de guerra foi à luta e rebelou-se contra a orientação antipolítica de sua direção, deu Luizianne em Fortaleza, quase deu Pellegrino em Salvador, e Pont diminuiu muito a diferença no final.
A longue durée autoritária brasileira prega mais uma peça à nossa modernidade. O PT, nascido
nos Estados ricos, portador do futuro, quando se expande nacionalmente, ganha nos Estados pobres e perde nos ricos. Mais que
simples troca geográfica, o que
ocorre é o precoce envelhecimento político do partido nascido para reformar o país; não se expandiu a modernidade, o atraso a engoliu. Raymundo Faoro não gostaria de ter visto essa regressão.
As conseqüências imediatas do
esquema azul-amarelo/vermelho
não se darão na política econômica. Mesmo porque esta se ancora
no acordo de Lula com Bush, pelo
qual o primeiro não iria para a esquerda e Bush não incluiria o Brasil no "eixo do mal". As nomeações de Meirelles e da equipe de
Palocci, que este sequer conhecia,
depõem em favor dessa tese. Então, a política econômica é intocável, mesmo porque qualquer movida aí dará na profecia de Mário
Amato: a saída será o aeroporto.
Será nas lutas internas do PT
com vistas à eleição de governador em 2006 a principal e imediata conseqüência. Marta perde,
mas sai com cacife suficiente para
voltar à disputa, e seus amigos/inimigos internos já estão se movendo. Uma outra conseqüência
se dará no plano das relações dos
partidos que fazem a sustentação
do governo Lula. Novas faturas
serão cobradas com as vitórias, e
aumentará a instabilidade do governo. Quanto aos tucanos, como
é óbvio aumenta o cacife de Alckmin, e baixa, de
imediato o de
FHC, que deveria
aprender com Camões: outro valor
mais alto se alevanta. Serra ficará
à espreita, mas será carta decisiva.
Dá para prever
algo para 2006?
Todos se acautelam com o conselheiro Acácio: é
preciso esperar.
Mas dá para prever: é a reeleição
de Lula que ficou
comprometida.
Se este não realizar algo transformador, que se traduza em recuo
das altas taxas de
desemprego e numa sustentada
expansão da economia, que não
se resuma ao agronegócio, pois
este não comove as cidades, pode
esperar pela reprovação em 2006.
A eleição do Serra já deu mostras
do que pode se montar: não à toa,
Cesar Maia, que no fundo é tucano e poderá ser estratégico em
2006, veio a São Paulo para ensaiar a nova aliança. O PSDB não
tem nenhuma figura excepcional,
nenhum líder carismático. Mas
terá fortíssima máquina. Ninguém ganha eleição no Brasil sem
o voto de São Paulo e do Rio.
Elas têm não só importância
quantitativa, mas sobretudo qualitativa: são os jornais e TVs de
São Paulo e Rio que são aguardados em outras cidades. São eles
que dão a pauta. São os cartoons e
caricaturas dos grandes chargistas que levaram FHC ao ridículo,
com sua postura arrogante e indiferente;
com Malan entrando
no ministério e dizendo a um mendigo
que lhe estendeu a
mão que não tinha
trocado. Com Zé Simão apelidando FHC
de Maria Antonieta
do Planalto. Lula já
começou a descer a
rampa da simpatia,
para ser caricaturado
como deslumbrado,
um fradinho -que
falta faz o Henfil!-
que desliza sorrateiramente do simpático ao perverso.
A política brasileira
deu um giro não virtuoso, pois à centralidade econômica de
São Paulo sobrepôs-se a centralidade política. Parece uma volta à
República Velha. Quem perde
com isso é a cidadania, pois a política foi a invenção magistral para
inverter a assimetria de poder que
governa a economia. Quando esse
poder da política é anulado, a
convergência dos dois poderes é
um risco para a democracia e para
a sua promessa de igualdade.
Francisco de Oliveira, 70, é sociólogo,
professor aposentado da USP e fundador do PT, com o qual rompeu em 2003
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