São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2001

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JANIO DE FREITAS

As farturas do dia-a-dia

A decisão de impedir que a Câmara aprovasse a extinção da Lei de Segurança Nacional, que serviu de instrumento "legal" para as violências praticadas pela ditadura militar, foi um complemento sob medida que Fernando Henrique Cardoso criou para a semana que se mostrava quase perfeita. Perfeita como a curva do ônibus que vai certeiro, exato, encarar o esguio poste na margem da avenida ampla e vazia.
O governo esteve impecável, em palavras e atos. Depois de dar os professores como uns coitados e da nota infantil para desdizer-se, Fernando Henrique ainda teve capacidade de gastar o tempo presidencial com um discurso para dizer que a greve das universidades era feita por "uma minoria". É greve de meia centena de universidades, sobre as 52 penduradas no organograma do Ministério da Educação. E ainda fez outro discurso para aplaudir-se por seu governo dar R$ 15 (isso mesmo, quinze reais) por mês a parte das famílias com renda abaixo de meio salário mínimo e um filho na escola.
De Pedro Malan a Francisco Dornelles, vários ministros acompanharam bem os solos do seu regente, mas só quanto ao grau de finesse, sem o componente humorístico, e por isso se perderam entre os jornais velhos. O que permite passar das palavras aos atos com que o governo fez a semana.
Uma semana de governo rico, com o presidente anunciando-se à frente da oferta de mais de R$ 3,5 bilhões para deputados levarem às suas áreas eleitorais, desde de que passassem a votar na alteração das leis trabalhistas, como obedientes (e caros) governistas. Mas, pela primeira vez desde que instituída a compra sistemática de aprovações no Congresso, os bilhões não deram a resposta esperada. Derrota política: os adeptos da redução de direitos trabalhistas por duas vezes tiveram que se escafeder do plenário, para não dar número suficiente à votação.
Em relação às greves a coisa não foi melhor. Com muito verbo e pouca palavra, o governo, por intermédio do ministro Martus Tavares, fiel intérprete de Pedro Malan e Fernando Henrique, comunicou que não seria cumprido o acordo com que o ministro da Previdência e os servidores encerraram mais de três meses de greve no INSS. Derrota: acordo confirmado diante da dupla ameaça, de saída escandalosa do ministro Roberto Brant e de retomada da greve.
Os R$ 250 milhões que Fernando Henrique se recusou a gastar com os professores, para encerrar a greve no começo, vão sair por perto de R$ 350 milhões, passados três meses de paralisação das universidades e colégios federais. A arrogância e a obtusidade praticadas pelo presidente e pelo ministro da Educação, em prejuízo do país, chegam ao resultado merecido.
Derrota nš 1: os grevistas conseguiram o acordo. Derrota nš 2: acordo feito no Congresso e imposto ao governo. Derrota nš 3: o governo, por intermédio de Paulo Renato Souza, anuncia a volta às aulas na segunda-feira, e os professores, em vista do que o governo mesmo fez com servidores da Imprensa Nacional e quis fazer com os do INSS, o desmentem e resolvem esperar as providências confirmadoras do acordo.
Houve a derrota nš 4, mas com parágrafo à parte: os 11 a 0 sofridos pelo governo no comedido Supremo Tribunal Federal. Diante dela, o advogado-geral da União, Gilmar Mendes, incumbido da parte governamental, entendeu que devia comemorá-la (Gilmar Mendes, para quem não se lembra, é o do manicômio judiciário).
Nada disso, no entanto, diminuirá a força de Fernando Henrique e dos seus assessores. Soube-se que o Planalto está fazendo concorrência para a compra de 124 toneladas de carnes diversas. Para atenderem apenas a seis meses de refeições, o que dá o consumo de 20,6 toneladas por mês, de janeiro a junho, e uma tonelada por dia útil. Como o expediente da Presidência encerra-se muito antes do jantar, os mil quilos diários de carnes seriam para uma só refeição.
Tanta fartura como esta da concorrência presidencial, só se encontrará nas felizes famílias que vão receber R$ 15 por mês. Ou R$ 0,50 por dia.
Não se pode acusar o governo de não tornar fartas as semanas e as mesas. As dele, ambas.


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