São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2007

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JANIO DE FREITAS

A milícia do preconceito

Que diferença há entre a proteção armada paga pelos favelados e as milícias nos condomínios de classe média para cima?

O PRECONCEITO social no Brasil é negado, disfarça-se, adota formas ainda não identificadas, mas de repente extravasa de uma inadvertência até onde são feitas acusações fortes, e justas, ao mesmo preconceito. É o que se vê na parte dedicada ao Brasil pelo relatório da Anistia Internacional sobre violência e segurança pública.
Há alguns anos surgiram em algumas favelas, no Rio, grupos organizados de proteção dos moradores, contra os abusos e violências dos criminosos locais, na própria comunidade. Para que os moradores chegassem a tal iniciativa, um desafio repleto de riscos de revide, só mesmo se o domínio da perversidade chegasse ao absurdo dos absurdos que fazem a violência no Rio. Em pouco tempo, para quem deles descrê, o milagre: a bandidagem foi expulsa das poucas favelas onde foram criados os grupos. Como se esperaria, grupos constituídos não só por valentes locais, como por ex-policiais e policiais.
Interesses eleitorais de setores influentes e pretendentes à prefeitura carioca e até ao governo fluminense lançaram, há perto de três meses, uma campanha de acusações aos grupos, que passaram a ser chamados de milícias. Em vez de venderem proteção, seriam especialistas em novas formas de domínio explorador e de extorsão dos favelados pacíficos, obrigados a pagar contribuições periódicas muito altas e a sofrer abusos em nada menores que os anteriores. Em vez de chamados pela população, seriam novos invasores, bem sucedidos na conquista da área. Mas não há dúvida de que, ao menos nos casos iniciais e de êxito mais surpreendente, a iniciativa foi das associações de moradores. Assim como o pagamento, à maneira de contrato de trabalho.
Não seria preciso procurar para depressa comprovar a presença de ex-policiais e policiais nos grupos ou milícias e, entre eles, prontuários pessoais que poderiam ser escritos só com cruzes, caveiras e cifrões. Foi apenas lógico, portanto, que em pouco tempo da campanha um policial de certo destaque surgisse no noticiário, como chefe da milícia que se apropriara de imensa favela. A batizada de Rio das Pedras, quase uma cidade com as grandes lojas varejistas, a iniciadora da limpeza e a mais bem sucedida na experiência. E, curiosamente, a mais fechada à ação de candidatos e políticos.
Pouco dias depois do noticiário que o acusou, o policial dado como chefe da milícia de Rio das Pedras morreu sob apreciável quantidade de balas ao volante de uma "Blazer". E, como outro milagre, a campanha contra as milícias sumiu, a morte do policial não gerou mais notícias de investigações, autoria, motivação, nada mais.
Os milagres e as estranhezas não eliminam, porém, algumas questões provocadas pelas milícias de favelas. Na ausência ou no fracasso das chamadas autoridades, o fato é que comunidades aceitaram o recurso possível e livraram-se dos seus opressores. É legítimo, ou não, que ajam assim? Se não é, e nada podem podem esperar do Estado em sua proteção, o que devem fazer? As respostas são menos simples do que talvez aparentem, mas conviria muito que o surgimento daquela iniciativa em várias favelas, com êxito às vezes até além do esperado, merecesse discussão isenta e tratamento jornalístico menos causador de estranhezas. Em um sentido ou em outro, é algo importante.
A Anistia Internacional não teve relação com a campanha e com o noticiário subitamente suspensos. Mas adotou, em seu relatório, a reprovação aos grupos ou, vá lá, milícias que algumas favelas compuseram. Seria o caso, então, de explicar que diferença há entre a proteção armada paga pelos favelados e as milícias que se vêem em todos os condomínios de classe média para cima, ruas privatizadas por moradores ricos, com cancelas e guardas armados, e mais guardas armados e com uniformes de suas milícias nos bancos, shoppings, prédios luxuosos de escritórios, em todas as cidades de alguma expressão econômica.
A diferença entre as milícias estaria só em que algumas estão registradas como empresas, milícias profissionais, pagam ou sonegam impostos, e outras são informais como a grande maioria dos trabalhadores favelados? A diferença está em quem considera, seja com que finalidade for, as duas milícias. E o nome da diferença só pode ser este: preconceito social.


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