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JANIO DE FREITAS
A milícia do preconceito
Que diferença há entre a proteção armada paga pelos favelados e as milícias nos condomínios de classe média para cima?
O PRECONCEITO social
no Brasil é negado,
disfarça-se, adota formas ainda não identificadas,
mas de repente extravasa de
uma inadvertência até onde
são feitas acusações fortes,
e justas, ao mesmo preconceito. É o que se vê na parte dedicada ao Brasil pelo relatório
da Anistia Internacional sobre violência e segurança
pública.
Há alguns anos surgiram
em algumas favelas, no Rio,
grupos organizados de proteção dos moradores, contra os
abusos e violências dos criminosos locais, na própria comunidade. Para que os moradores chegassem a tal iniciativa, um desafio repleto de riscos de revide, só mesmo se o
domínio da perversidade chegasse ao absurdo dos absurdos que fazem a violência no
Rio. Em pouco tempo, para
quem deles descrê, o milagre:
a bandidagem foi expulsa das
poucas favelas onde foram
criados os grupos. Como se
esperaria, grupos constituídos não só por valentes locais,
como por ex-policiais e policiais.
Interesses eleitorais de setores influentes e pretendentes à prefeitura carioca e até
ao governo fluminense lançaram, há perto de três meses,
uma campanha de acusações
aos grupos, que passaram a
ser chamados de milícias. Em
vez de venderem proteção,
seriam especialistas em novas formas de domínio explorador e de extorsão dos favelados pacíficos, obrigados a
pagar contribuições periódicas muito altas e a sofrer abusos em nada menores que os
anteriores. Em vez de chamados pela população, seriam
novos invasores, bem sucedidos na conquista da área. Mas
não há dúvida de que, ao menos nos casos iniciais e de êxito mais surpreendente, a iniciativa foi das associações de
moradores. Assim como o pagamento, à maneira de contrato de trabalho.
Não seria preciso procurar
para depressa comprovar a
presença de ex-policiais e policiais nos grupos ou milícias
e, entre eles, prontuários pessoais que poderiam ser escritos só com cruzes, caveiras e
cifrões. Foi apenas lógico,
portanto, que em pouco tempo da campanha um policial
de certo destaque surgisse no
noticiário, como chefe da milícia que se apropriara de
imensa favela. A batizada de
Rio das Pedras, quase uma cidade com as grandes lojas varejistas, a iniciadora da limpeza e a mais bem sucedida na
experiência. E, curiosamente,
a mais fechada à ação de candidatos e políticos.
Pouco dias depois do noticiário que o acusou, o policial
dado como chefe da milícia de
Rio das Pedras morreu sob
apreciável quantidade de balas ao volante de uma "Blazer". E, como outro milagre, a
campanha contra as milícias
sumiu, a morte do policial não
gerou mais notícias de investigações, autoria, motivação,
nada mais.
Os milagres e as estranhezas não eliminam, porém, algumas questões provocadas
pelas milícias de favelas. Na
ausência ou no fracasso das
chamadas autoridades, o fato
é que comunidades aceitaram
o recurso possível e livraram-se dos seus opressores. É legítimo, ou não, que ajam assim?
Se não é, e nada podem podem esperar do Estado em
sua proteção, o que devem fazer? As respostas são menos
simples do que talvez aparentem, mas conviria muito que
o surgimento daquela iniciativa em várias favelas, com
êxito às vezes até além do esperado, merecesse discussão
isenta e tratamento jornalístico menos causador de estranhezas. Em um sentido ou
em outro, é algo importante.
A Anistia Internacional não
teve relação com a campanha
e com o noticiário subitamente suspensos. Mas adotou, em
seu relatório, a reprovação
aos grupos ou, vá lá, milícias
que algumas favelas compuseram. Seria o caso, então, de
explicar que diferença há entre a proteção armada paga
pelos favelados e as milícias
que se vêem em todos os condomínios de classe média para cima, ruas privatizadas por
moradores ricos, com cancelas e guardas armados, e mais
guardas armados e com uniformes de suas milícias nos
bancos, shoppings, prédios
luxuosos de escritórios, em
todas as cidades de alguma
expressão econômica.
A diferença entre as milícias estaria só em que algumas estão registradas como
empresas, milícias profissionais, pagam ou sonegam impostos, e outras são informais
como a grande maioria dos
trabalhadores favelados? A
diferença está em quem considera, seja com que finalidade for, as duas milícias. E o
nome da diferença só pode
ser este: preconceito social.
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