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NO PLANALTO
Má notícia: Lula é menor do que a crise que o engolfa
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
O que mais assusta na
marcha resoluta da estrela do ex-PT rumo à sarjeta não é
a sensação de que Lula se converteu num político igual aos demais. Espantosa mesmo é a impressão de que ele se tornou um
líder diferente de si mesmo.
O repórter pensou em sugerir a
Lula a leitura de um bom livro:
"Why Things Bite Back", de Edward Tenner. O diabo é que a
tradução para o português ("A
Vingança da Tecnologia", editora Campus, 1997) ocupa 474 páginas. Algo intransponível para
um presidente que maldiz de auxiliares que ousam entregar-lhe
relatórios com mais de duas folhas.
Melhor, talvez, resumir aqui a
parte do livro mais valiosa para
Lula. Vai da página 22 à 25.
Conta a experiência do major
John Paul Stapp. Médico e biofísico, Stapp foi selecionado pela
Força Aérea dos EUA como cobaia de testes para medir a resistência humana a grandes acelerações. Desafiou a velocidade pilotando um trenó com propulsão
de foguete.
Em 1949, Stapp bateu o recorde
de aceleração. Não pôde, porém,
festejar o feito. Os acelerômetros
do trenó-foguete simplesmente
não funcionaram. Desolado,
Stapp encomendou ao engenheiro que o ajudava, o capitão Edward Murphy Jr., diligências para identificar a falha. Não tardou a descobrir que um técnico
ligara os circuitos do veículo ao
contrário.
No relatório em que informa
sobre o malfeito, o capitão
Murphy Jr. anotou: "Se há mais
de uma forma de fazer um trabalho e uma dessas formas redundará em desastre, então alguém fará o trabalho dessa forma". Em entrevista a jornalistas,
o major Stapp batizou de "Lei de
Murphy" o diagnóstico do auxiliar. Resumiu-o assim: "Se alguma coisa pode dar errado, dará".
Aplicada à gestão do ex-PT, a
"Lei de Murphy" ajuda a entender a atmosfera de caos que
enreda Lula. O presidente confiou os circuitos de sua gestão a
José "Sai Rápido Daí" Dirceu.
Podendo realizar o trabalho de
diversas formas, o ex-chefão da
Casa Civil optou por ligar os fios
do governo ao contrário. Sobreveio o desastre.
Ignorar não é o melhor remédio para a ignorância. Mas Lula
continua sustentando que desconhecia as estripulias atribuídas
a Dirceu e a seus dois braços partidários: Delúbio "Unha Encravada" Soares e "Silvíssimo" Pereira. Dar crédito a essa versão
significa admitir que o presidente não preside o país.
O comandante de fato foi, até
ontem, Dirceu. Mergulhou uma
administração que se pretendia
diferente no mesmo pântano fisiológico que sugou administrações anteriores. Pôs-se a tricotar
com personagens como Roberto
Jefferson, que, para sorte do Brasil e azar do ex-PT, hoje ganha a
vida com o suor do dedo.
À medida que a realidade à
sua volta se torna inacreditável,
Lula vai se distanciando daquele
personagem eufórico que tomou
posse em janeiro de 2003. Na última quinta-feira, um ministro
que se julga conhecedor da alma
presidencial disse ao repórter
que Lula está deprimido. Oscila
entre a apatia e o amargor. Julga-se traído.
Capitaneada à sombra por
FHC, a oposição torce para que
as investigações não convertam
a "traição" em cumplicidade. O
ex-presidente tem recomendado
cautela ao tucanato. Diz que é
preciso "balançar a árvore" com
cuidado. Sob pena de derrubar
do galho o fruto principal.
Por sorte, o alheamento parece
não ter privado Lula de lampejos de lucidez. Privadamente,
admite que errou ao vitaminar
os poderes de Dirceu. Reconhece
que falhou ao não impor limites
à cobiça do ex-PT. Confessa que
descuidou da ocupação predatória da máquina estatal.
Diante de tantos equívocos, a
linha que separa o PT do ex-PT
tornou-se o caminho mais longo
entre um projeto e sua realização. Para chegar ao final de seu
mandato, Lula terá de cruzar
um viaduto que liga o impensável, já descoberto, a malfeitorias
ainda insabidas. Tudo porque o
partido do presidente, antes
idealista, descobriu que poderia
lucrar com o seu ideal.
Bem geridos, desastres podem
se transformar em poderosos
instrumentos de mudança. Certas coisas, disse o capitão Edward Murphy Jr., às vezes só podem dar certo se derem errado
primeiro. A despeito da falha
que o desconsolou em 1949, o
major John Paul Stapp continuou testando, por mais cinco
anos, a resistência do organismo
humano à alta velocidade. No
seu último teste, em dezembro de
1954, desacelerou de 1.011 quilômetros por hora para zero em 1,4
segundo.
Stapp iniciou, em seguida,
uma vitoriosa campanha para
que os cintos de segurança se tornassem obrigatórios nos automóveis. A "Lei de Murphy", escreveu Edward Tenner, o autor
de "A Vingança da Tecnologia",
"não é um princípio fatalista,
mas um apelo para que todos se
mantenham atentos".
Se quiser levar o que lhe resta
de mandato a bom termo, Lula,
assim como o major Stapp, terá
de testar a sua própria resistência à alta velocidade. O tempo de
que dispõe é exíguo para as mudanças que terá de operar. Beneficiado com a ausência de Dirceu
na sede do poder, Lula serve-se
agora de conselheiros mais sensatos. Gente como o ministro
Márcio Thomaz Bastos, que sabe
que o ilícito só se resolve com
apurações francas, feitas com
desassombro.
Lula gosta de dizer coisas definitivas em seus discursos. Falta
agora definir as coisas. Não
adianta apenas vociferar que
"não restará pedra sobre pedra",
que vai "cortar na própria carne". A sobrevivência no governo
de "pedras" como Romero Jucá e
Henrique Meirelles, ambos encrencados no STF, demonstra
que Lula hesita até em cortar na
"carne" alheia.
À medida que o despudor do ex-PT vai sendo apurado, o Brasil vira mais uma página de sua história. Para trás. Cabe a Lula demonstrar que ainda reúne condições para mudar a folha de sua
própria biografia para a frente. A
mera renovação de promissórias
com legendas como o PMDB não
o livrarão do risco de passar ao
verbete da enciclopédia como o
segundo presidente brasileiro a
ser infelicitado pelo impeachment.
PS.: O repórter informa aos seus
(poucos) leitores que entrará em
férias a partir de amanhã.
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