São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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NO PLANALTO

Má notícia: Lula é menor do que a crise que o engolfa

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O que mais assusta na marcha resoluta da estrela do ex-PT rumo à sarjeta não é a sensação de que Lula se converteu num político igual aos demais. Espantosa mesmo é a impressão de que ele se tornou um líder diferente de si mesmo.
O repórter pensou em sugerir a Lula a leitura de um bom livro: "Why Things Bite Back", de Edward Tenner. O diabo é que a tradução para o português ("A Vingança da Tecnologia", editora Campus, 1997) ocupa 474 páginas. Algo intransponível para um presidente que maldiz de auxiliares que ousam entregar-lhe relatórios com mais de duas folhas.
Melhor, talvez, resumir aqui a parte do livro mais valiosa para Lula. Vai da página 22 à 25. Conta a experiência do major John Paul Stapp. Médico e biofísico, Stapp foi selecionado pela Força Aérea dos EUA como cobaia de testes para medir a resistência humana a grandes acelerações. Desafiou a velocidade pilotando um trenó com propulsão de foguete.
Em 1949, Stapp bateu o recorde de aceleração. Não pôde, porém, festejar o feito. Os acelerômetros do trenó-foguete simplesmente não funcionaram. Desolado, Stapp encomendou ao engenheiro que o ajudava, o capitão Edward Murphy Jr., diligências para identificar a falha. Não tardou a descobrir que um técnico ligara os circuitos do veículo ao contrário.
No relatório em que informa sobre o malfeito, o capitão Murphy Jr. anotou: "Se há mais de uma forma de fazer um trabalho e uma dessas formas redundará em desastre, então alguém fará o trabalho dessa forma". Em entrevista a jornalistas, o major Stapp batizou de "Lei de Murphy" o diagnóstico do auxiliar. Resumiu-o assim: "Se alguma coisa pode dar errado, dará".
Aplicada à gestão do ex-PT, a "Lei de Murphy" ajuda a entender a atmosfera de caos que enreda Lula. O presidente confiou os circuitos de sua gestão a José "Sai Rápido Daí" Dirceu. Podendo realizar o trabalho de diversas formas, o ex-chefão da Casa Civil optou por ligar os fios do governo ao contrário. Sobreveio o desastre.
Ignorar não é o melhor remédio para a ignorância. Mas Lula continua sustentando que desconhecia as estripulias atribuídas a Dirceu e a seus dois braços partidários: Delúbio "Unha Encravada" Soares e "Silvíssimo" Pereira. Dar crédito a essa versão significa admitir que o presidente não preside o país.
O comandante de fato foi, até ontem, Dirceu. Mergulhou uma administração que se pretendia diferente no mesmo pântano fisiológico que sugou administrações anteriores. Pôs-se a tricotar com personagens como Roberto Jefferson, que, para sorte do Brasil e azar do ex-PT, hoje ganha a vida com o suor do dedo.
À medida que a realidade à sua volta se torna inacreditável, Lula vai se distanciando daquele personagem eufórico que tomou posse em janeiro de 2003. Na última quinta-feira, um ministro que se julga conhecedor da alma presidencial disse ao repórter que Lula está deprimido. Oscila entre a apatia e o amargor. Julga-se traído.
Capitaneada à sombra por FHC, a oposição torce para que as investigações não convertam a "traição" em cumplicidade. O ex-presidente tem recomendado cautela ao tucanato. Diz que é preciso "balançar a árvore" com cuidado. Sob pena de derrubar do galho o fruto principal.
Por sorte, o alheamento parece não ter privado Lula de lampejos de lucidez. Privadamente, admite que errou ao vitaminar os poderes de Dirceu. Reconhece que falhou ao não impor limites à cobiça do ex-PT. Confessa que descuidou da ocupação predatória da máquina estatal.
Diante de tantos equívocos, a linha que separa o PT do ex-PT tornou-se o caminho mais longo entre um projeto e sua realização. Para chegar ao final de seu mandato, Lula terá de cruzar um viaduto que liga o impensável, já descoberto, a malfeitorias ainda insabidas. Tudo porque o partido do presidente, antes idealista, descobriu que poderia lucrar com o seu ideal.
Bem geridos, desastres podem se transformar em poderosos instrumentos de mudança. Certas coisas, disse o capitão Edward Murphy Jr., às vezes só podem dar certo se derem errado primeiro. A despeito da falha que o desconsolou em 1949, o major John Paul Stapp continuou testando, por mais cinco anos, a resistência do organismo humano à alta velocidade. No seu último teste, em dezembro de 1954, desacelerou de 1.011 quilômetros por hora para zero em 1,4 segundo.
Stapp iniciou, em seguida, uma vitoriosa campanha para que os cintos de segurança se tornassem obrigatórios nos automóveis. A "Lei de Murphy", escreveu Edward Tenner, o autor de "A Vingança da Tecnologia", "não é um princípio fatalista, mas um apelo para que todos se mantenham atentos".
Se quiser levar o que lhe resta de mandato a bom termo, Lula, assim como o major Stapp, terá de testar a sua própria resistência à alta velocidade. O tempo de que dispõe é exíguo para as mudanças que terá de operar. Beneficiado com a ausência de Dirceu na sede do poder, Lula serve-se agora de conselheiros mais sensatos. Gente como o ministro Márcio Thomaz Bastos, que sabe que o ilícito só se resolve com apurações francas, feitas com desassombro.
Lula gosta de dizer coisas definitivas em seus discursos. Falta agora definir as coisas. Não adianta apenas vociferar que "não restará pedra sobre pedra", que vai "cortar na própria carne". A sobrevivência no governo de "pedras" como Romero Jucá e Henrique Meirelles, ambos encrencados no STF, demonstra que Lula hesita até em cortar na "carne" alheia.
À medida que o despudor do ex-PT vai sendo apurado, o Brasil vira mais uma página de sua história. Para trás. Cabe a Lula demonstrar que ainda reúne condições para mudar a folha de sua própria biografia para a frente. A mera renovação de promissórias com legendas como o PMDB não o livrarão do risco de passar ao verbete da enciclopédia como o segundo presidente brasileiro a ser infelicitado pelo impeachment.

PS.: O repórter informa aos seus (poucos) leitores que entrará em férias a partir de amanhã.


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