São Paulo, segunda-feira, 03 de setembro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/CARLOS AYRES BRITTO

Para ministro, julgamento foi técnico, mas "ambiência psicossocial" favoreceu compromisso mais forte com a ética

Pressão social por ética influenciou decisão do STF sobre mensalão

Ueslei Marcelino/Folha Imagem
O ministro do STF Carlos Ayres Brito em sua casa em Brasília

SILVANA DE FREITAS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O MINISTRO DO STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto, 64, disse que a expectativa da sociedade por ética na política pesou na decisão de abertura da ação penal contra os 40 denunciados do mensalão, embora sustente que o julgamento foi técnico.
"Nós decidimos tecnicamente, mas não podemos negar que a ambiência psicossocial favoreceu um compromisso ainda mais forte com as exigências éticas", afirmou o ministro em entrevista à Folha, concedida em seu apartamento, na manhã de quinta-feira.
Britto acusou a imprensa de comportamento abusivo nos dois episódios que expuseram a imagem do tribunal: a reprodução da conversa por e-mails entre os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia Antunes Rocha e a divulgação do diálogo de Lewandowski com o irmão, por telefone, em um restaurante de Brasília.
Ele negou interferências políticas no julgamento, mas, ao comentar a nomeação do ministro Carlos Alberto Menezes Direito para o STF, confirmou a existência de "correntes" no tribunal. "É bom que haja pessoas representativas das diversas correntes políticas."
Ex-petista, o ministro acredita que o episódio do mensalão não "contaminou" o partido. Ele foi filiado por 18 anos e se desligou em 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva o indicou para o STF. A seguir, os principais trechos da entrevista:  

FOLHA - Qual a avaliação que o sr. faz do maior julgamento da história do STF?
CARLOS AYRES BRITO
- Foi o maior julgamento em duração, complexidade e magnitude da causa, pela qualidade das pessoas envolvidas, pelo papel social, político e empresarial dos envolvidos. Daí o seu caráter histórico. Ele foi essencialmente técnico, da própria técnica jurídica. Eu tenho certeza de que todo mundo decidiu fundamentadamente.
Agora, é uma decisão que comporta outra leitura do ponto de vista ético-político. A tecnicalidade da decisão não nos impede de reconhecer isso: o STF está sintonizado com os novos ares republicanos, democráticos, que permeiam o momento histórico brasileiro.
Há uma exigência maior de qualidade de vida política para o país, de uma política permeada de ética. Lancei oralmente um jogo de palavras [no julgamento] que reafirmo: "Onde a ética na política não é tudo, a política não é nada". Estamos no limiar de uma era que sinaliza para essa compreensão.

FOLHA - O sr. diria que o julgamento foi técnico, mas levou em conta o momento social em que a preocupação com a ética é dominante?
BRITTO
- Sim. Decidimos tecnicamente, mas não podemos negar que a ambiência psicossocial favoreceu um compromisso ainda mais forte com as exigências éticas.

FOLHA - O julgamento foi permeado de incidentes, como a troca de e-mails entre os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia e o telefonema de Lewandowski para o irmão. O cidadão ficou com a forte impressão de que os srs. julgaram sob pressão e que houve interferência de questões políticas na decisão. Havia, por exemplo, a intenção inicial de "amaciar" para o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu?
BRITTO
- Estou no STF há quatro anos e três meses. Já me sinto, digamos assim, experimentado. Eu não me senti acuado ou pressionado em nenhum momento. Está para nascer quem me acue na hora da minha decisão. Decido solitariamente, sentado no tribunal da minha própria consciência. Eu não vi ninguém se reunindo, cabalando, não houve nada disso.

FOLHA - Em que momento o sr. definiu o seu voto, na sua essência? Foi antes do julgamento, depois de ouvir o procurador-geral e os advogados dos réus, após o voto do relator?
BRITTO
- Vou dizer uma coisa que, diante de uma platéia de acadêmicos, seria interpretado como um recibo de anticientificidade. Faço meditação oriental há 13 anos e aprendi com os místicos mais acatados, como Buda, Cristo, são Francisco de Assis e, mais recentemente, Krishnamurti e Osho.
Em suma, eu aprendi nessa literatura espiritualizada que você deve ficar cada momento numa espécie de eterno agora, cortar o cordão umbilical com o passado e com o futuro. Sou uma pessoa muito atenta. Então vou para uma sessão para decidir na hora. Fui decidindo à medida em que os debates ocorriam. Não combinei voto com ninguém nem acho que os outros tenham combinado.

FOLHA - O sr. tem o hábito de usar o laptop durante a sessão. Costuma trocar e-mails?
BRITTO
- Sim. Converso com os meus assessores e, vez por outra, com os ministros, mas não sobre o conteúdo técnico da decisão. Geralmente para dar uma relaxada. Faço um trocadilho, uma observação lateral.
Ontem mesmo [quarta-feira], estávamos julgando uma lei de São Paulo que proibiu a fabricação, o uso e o transporte de amianto, que tem um componente cancerígeno. Já no fim da sessão, eu disse que isso me remetia para a minha experiência nordestina. Lá, as casas pequenas, dos despatrimonializados, são cobertas com telhado de amianto. É uma crueldade, um calor imenso. Eu disse: "Quando eu via o sol batendo de chapa no telhado de amianto eu ficava na dúvida se o telhado estava batendo ou apanhando".
Esse tipo de coisa descontrai. Às vezes, digo na sessão. Outras, mando para eles [e-mail].
Quando você vir um ministro rir de nada, pode saber que outro mandou uma mensagem.

FOLHA - O sr. contou, em certo julgamento, a história de uma criança que desenhou uma galinha com três pernas.
BRITTO
- E a professora disse que a galinha não podia voar perto das nuvens, como se fosse um pássaro, e que nenhuma tem três pernas. Aí a garota disse: "Eu sei disso. Porém eu coloquei a terceira perna para dar o impulso". O que eu quis dizer é que precisamos de heterodoxia, de criatividade, de não reproduzirmos as coisas mecanicamente. O julgamento exige de nós um pouco de ousadia para sintonizar não com a sociedade, mas com a existência.

FOLHA - Que julgamento o sr. faz da imprensa, no caso mensalão?
BRITTO
- Primeiro, faço um elogio. Nós já vivemos a Idade Média. Agora estamos vivendo a "idade mídia". Significa que a imprensa ultrapassa sua dimensão informativa para incorporar a analítica, a investigativa e a denunciativa, no que tem o respaldo da Constituição.
A crítica que não posso deixar de fazer se restringe ao episódio da intranet, da comunicação entre o ministro Lewandowski e seu gabinete e entre ele e a ministra Cármen. Acho que aí houve um abuso do direito de informar. A imprensa acha pouco a transparência com que se dá toda sessão do STF? Tudo ao vivo, televisionado, todo mundo com celulares, câmeras fotográficas, seus gravadores, filmadoras, com transparência total. A imprensa está achando pouco e ainda se impõe a devassar a intimidade das nossas comunicações?

FOLHA - E sobre o diálogo do ministro Lewandowski com o irmão, por telefone, testemunhado pela repórter da Folha?
BRITTO
- Foi uma interceptação [de uma conversa telefônica]. Esse momento da comunicação é um bem jurídico protegido pela Constituição. Enquanto essa comunicação se processa, esse bem é inviolável.

FOLHA - O interesse público em relação à conversa captada justifica a divulgação?
BRITTO
- Isso é delicado, porque há interesse público em manter a privacidade das pessoas. É preciso ver cada situação.

FOLHA - O STF julgou com a "faca no pescoço"?
BRITTO
- De nenhum modo. Nenhum ambiente de que participei me sugeriu que fosse uma pressão política, seja da imprensa, seja do governo.

FOLHA - O sr. já foi filiado ao PT. Como vê o fato de dirigentes do partido estarem envolvidos em uma ação penal tão grandiosa?
BRITTO
- É lastimável, embora eu faça uma diferença. Vejo o PT como um todo e é sobre uma pequena parte dele que recaem indícios de delitividade. Isso não chega a contaminá-lo.

FOLHA - E sobre a indicação do ministro Carlos Alberto Direito?
BRITTO
- Ele é muito competente, responsável e cordato. Se é ou não conservador, isso não me preocupa, porque a sociedade é plural, e o pluralismo se traduz nesse direito de ser diferente. É bom que haja nos tribunais pessoas representativas das várias correntes políticas.

FOLHA - O STF ficará mais equilibrado? Hoje está muito liberal?
BRITTO
- Acho que ele vem para somar, para agregar.


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