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Câmara permite "indústria de faltas" para deputados
Sob alegação de "missão oficial", Mesa abona 37,5 mil ausências sem pedir comprovante
Levantamento da Folha mostra que parlamentares utilizam estratégia que mantém intactos salário, imagem e mandato
Sérgio Lima - 14.nov.06/Folha Imagem
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Plenário da Câmara dos Deputados às 15h de uma terça-feira do mês passado, no quarto e último ano da atual Legislatura |
RANIER BRAGON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A Câmara dos Deputados
perdoou nos últimos quatro
anos 79% das faltas às sessões
de votação no plenário sob o argumento de que os congressistas cumpriam "missão oficial
autorizada". O artifício permitiu que ao menos 37,5 mil ausências ficassem à margem do
escrutínio público e alheias às
punições que existem na Casa
para os parlamentares fujões.
Em indício claro da existência de uma "indústria da falta",
as "missões" se concentraram
em vésperas de feriados, épocas
de festas populares e dias próximos a fins de semana.
Análise feita pela Folha dos
registros de freqüência às 568
sessões da atual Legislatura
-de fevereiro de 2003 a setembro deste ano-, aliada à apuração de diversos casos, mostra
que a "missão oficial autorizada" é, usualmente, uma senha
para justificar faltas ocasionadas por motivos que vão de
compromissos eleitorais nos
Estados à participação na festa
de São João no Nordeste.
O esquema funciona assim: o
deputado faltoso pede ao líder
de sua bancada o abono da falta. Este encaminha um ofício à
Mesa da Câmara, que, sem cobrar comprovante ou verificar
a veracidade da informação,
perdoa a falta alegada por "missão oficial autorizada".
Assim, caem na mesma vala
um deputado que viaja para
acompanhar investigações da
CPI dos sanguessugas no Mato
Grosso e outro que deixa Brasília para pular Carnaval. "Quantitativamente estou na vala comum, mas qualitativamente
me orgulho muito do papel que
faço na área de relações internacionais", afirmou João Herrmann Neto (PDT-SP) -abono
de 221 faltas-, que realizou diversas viagens a países como
Timor, Haiti e Iraque, onde
participou das negociações em
torno do seqüestro do engenheiro brasileiro João José de
Vasconcellos Júnior, em 2005.
Sem fiscalização
"Se o deputado diz para mim
que está em uma missão no interior, não cabe a mim fiscalizar. Confio na palavra do deputado. O que posso fazer? Mandar uma equipe acompanhá-lo? Isso não existe", alega o líder da bancada do PTB, José
Múcio (PE). Já a Mesa da Câmara informa que não tem por
que duvidar da palavra do líder.
A busca pelo abono da falta se
dá por dois motivos: além da
tentativa de evitar um desgaste
de imagem pública: caso não
seja justificada, a ausência resulta em desconto no salário e,
se superar mais de um terço das
sessões do ano, redunda em
cassação de mandato.
"As possibilidades de justificar o abono são grandes, muitos amplas, totais. É só dizer
que você está em missão oficial
que resolve. Não se pode criar
aqui uma indústria do abono",
diz o deputado Chico Alencar
(PSOL-RJ), que figura entre os
mais assíduos da Casa.
O ranking das 37,5 mil supostas missões mostra que o deputado que mais recorreu a ela
nos últimos quatro anos foi
Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), um dos principais nomes
lançados na disputa pela presidência da Câmara.
Foram 228 justificativas de
falta sob esse argumento, o que
representa 40% de todas as sessões do período. Geddel se beneficiou, durante boa parte do
tempo, de um ato que privilegia
os sete integrantes da Mesa, os
quatro suplentes, os líderes
partidários e os presidentes de
partidos: eles têm suas faltas
abonadas automaticamente. O
motivo: "missão oficial autorizada". Em março deste ano, o
presidente da Câmara, Aldo
Rebelo (PC do B-SP), estendeu
a regalia a todos os 20 presidentes das comissões permanentes
da Casa. "Eles disseram que
precisam viajar, se ausentar para audiências públicas, visitas,
por isso queriam o mesmo status dos líderes", justifica Aldo.
As sessões de votação na Câmara ocorrem, na maioria das
vezes, nas tardes e noites das
terças-feiras, nas quartas e nas
manhãs das quintas. Nos outros períodos, há, quando muito, sessões de discussão em que
não é registrada freqüência.
"Esse mecanismo deveria
existir, mas de forma mais rígida. Só abonar os verdadeiros
casos de missão oficial. Eu mesmo justifiquei, sem maiores
problemas, porque todo mundo está fazendo isso", diz o primeiro-secretário da Câmara,
Inocêncio Oliveira (PR-PE).
Dos três deputados que comandaram a Câmara nesta legislatura, Severino Cavalcanti
(PP-PE), popularizado por seu
bom trânsito entre os deputados de pouca expressão, foi o
que mais concedeu abonos, em
média: 1.143 por mês.
Luciano Castro (RR), líder da
bancada do PR (Partido da República, resultante da fusão do
PL com o Prona), dá um exemplo do que ele acata como "missão oficial autorizada":
"A falta tem que ser justificável para ser abonada. Na época
das eleições, havia muito compromisso dos parlamentares
em suas bases: era convenção
partidária, articulação, aliança
que ele fazia às pressas, município por município. O sujeito
tem que andar o Estado todo."
Os dados colhidos pela Folha
mostram que, em média, havia
66 deputados em "missão oficial" a cada sessão. Houve épocas de pico, entretanto.
Como na quinta-feira anterior ao Carnaval de 2003, logo
no início da Legislatura: segundo os registros, havia 154 deputados, 30% da Câmara, em
"missão oficial autorizada".
Nas três sessões anteriores ao
feriado de Tiradentes do ano
seguinte, a média dos "em missão" subiu para 202 por sessão.
Mas o auge, em 2004, aconteceu na sessão do dia 29 de junho, período coincidente com
as festas juninas no Norte e
Nordeste: 264, pouco mais da
metade da Câmara. O ano foi
encerrado com uma frustrada
sessão em 22 de dezembro, três
dias antes do Natal: 220 faltaram sob o argumento de participação em "missão oficial".
O deputado Wagner Lago
(PDT-MA) vocaliza o argumento dos que defendem o
abono sob a alegação de que o
contato com as bases, seja em
época de São João ou não, faz
parte das responsabilidades do
congressista. "O deputado está
sempre tratando de política,
mesmo quando está em festa."
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