São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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Câmara permite "indústria de faltas" para deputados

Sob alegação de "missão oficial", Mesa abona 37,5 mil ausências sem pedir comprovante

Levantamento da Folha mostra que parlamentares utilizam estratégia que mantém intactos salário, imagem e mandato

Sérgio Lima - 14.nov.06/Folha Imagem
Plenário da Câmara dos Deputados às 15h de uma terça-feira do mês passado, no quarto e último ano da atual Legislatura


RANIER BRAGON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A Câmara dos Deputados perdoou nos últimos quatro anos 79% das faltas às sessões de votação no plenário sob o argumento de que os congressistas cumpriam "missão oficial autorizada". O artifício permitiu que ao menos 37,5 mil ausências ficassem à margem do escrutínio público e alheias às punições que existem na Casa para os parlamentares fujões.
Em indício claro da existência de uma "indústria da falta", as "missões" se concentraram em vésperas de feriados, épocas de festas populares e dias próximos a fins de semana.
Análise feita pela Folha dos registros de freqüência às 568 sessões da atual Legislatura -de fevereiro de 2003 a setembro deste ano-, aliada à apuração de diversos casos, mostra que a "missão oficial autorizada" é, usualmente, uma senha para justificar faltas ocasionadas por motivos que vão de compromissos eleitorais nos Estados à participação na festa de São João no Nordeste.
O esquema funciona assim: o deputado faltoso pede ao líder de sua bancada o abono da falta. Este encaminha um ofício à Mesa da Câmara, que, sem cobrar comprovante ou verificar a veracidade da informação, perdoa a falta alegada por "missão oficial autorizada".
Assim, caem na mesma vala um deputado que viaja para acompanhar investigações da CPI dos sanguessugas no Mato Grosso e outro que deixa Brasília para pular Carnaval. "Quantitativamente estou na vala comum, mas qualitativamente me orgulho muito do papel que faço na área de relações internacionais", afirmou João Herrmann Neto (PDT-SP) -abono de 221 faltas-, que realizou diversas viagens a países como Timor, Haiti e Iraque, onde participou das negociações em torno do seqüestro do engenheiro brasileiro João José de Vasconcellos Júnior, em 2005.

Sem fiscalização
"Se o deputado diz para mim que está em uma missão no interior, não cabe a mim fiscalizar. Confio na palavra do deputado. O que posso fazer? Mandar uma equipe acompanhá-lo? Isso não existe", alega o líder da bancada do PTB, José Múcio (PE). Já a Mesa da Câmara informa que não tem por que duvidar da palavra do líder.
A busca pelo abono da falta se dá por dois motivos: além da tentativa de evitar um desgaste de imagem pública: caso não seja justificada, a ausência resulta em desconto no salário e, se superar mais de um terço das sessões do ano, redunda em cassação de mandato.
"As possibilidades de justificar o abono são grandes, muitos amplas, totais. É só dizer que você está em missão oficial que resolve. Não se pode criar aqui uma indústria do abono", diz o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que figura entre os mais assíduos da Casa.
O ranking das 37,5 mil supostas missões mostra que o deputado que mais recorreu a ela nos últimos quatro anos foi Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), um dos principais nomes lançados na disputa pela presidência da Câmara.
Foram 228 justificativas de falta sob esse argumento, o que representa 40% de todas as sessões do período. Geddel se beneficiou, durante boa parte do tempo, de um ato que privilegia os sete integrantes da Mesa, os quatro suplentes, os líderes partidários e os presidentes de partidos: eles têm suas faltas abonadas automaticamente. O motivo: "missão oficial autorizada". Em março deste ano, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP), estendeu a regalia a todos os 20 presidentes das comissões permanentes da Casa. "Eles disseram que precisam viajar, se ausentar para audiências públicas, visitas, por isso queriam o mesmo status dos líderes", justifica Aldo.
As sessões de votação na Câmara ocorrem, na maioria das vezes, nas tardes e noites das terças-feiras, nas quartas e nas manhãs das quintas. Nos outros períodos, há, quando muito, sessões de discussão em que não é registrada freqüência.
"Esse mecanismo deveria existir, mas de forma mais rígida. Só abonar os verdadeiros casos de missão oficial. Eu mesmo justifiquei, sem maiores problemas, porque todo mundo está fazendo isso", diz o primeiro-secretário da Câmara, Inocêncio Oliveira (PR-PE).
Dos três deputados que comandaram a Câmara nesta legislatura, Severino Cavalcanti (PP-PE), popularizado por seu bom trânsito entre os deputados de pouca expressão, foi o que mais concedeu abonos, em média: 1.143 por mês.
Luciano Castro (RR), líder da bancada do PR (Partido da República, resultante da fusão do PL com o Prona), dá um exemplo do que ele acata como "missão oficial autorizada":
"A falta tem que ser justificável para ser abonada. Na época das eleições, havia muito compromisso dos parlamentares em suas bases: era convenção partidária, articulação, aliança que ele fazia às pressas, município por município. O sujeito tem que andar o Estado todo."
Os dados colhidos pela Folha mostram que, em média, havia 66 deputados em "missão oficial" a cada sessão. Houve épocas de pico, entretanto.
Como na quinta-feira anterior ao Carnaval de 2003, logo no início da Legislatura: segundo os registros, havia 154 deputados, 30% da Câmara, em "missão oficial autorizada". Nas três sessões anteriores ao feriado de Tiradentes do ano seguinte, a média dos "em missão" subiu para 202 por sessão. Mas o auge, em 2004, aconteceu na sessão do dia 29 de junho, período coincidente com as festas juninas no Norte e Nordeste: 264, pouco mais da metade da Câmara. O ano foi encerrado com uma frustrada sessão em 22 de dezembro, três dias antes do Natal: 220 faltaram sob o argumento de participação em "missão oficial".
O deputado Wagner Lago (PDT-MA) vocaliza o argumento dos que defendem o abono sob a alegação de que o contato com as bases, seja em época de São João ou não, faz parte das responsabilidades do congressista. "O deputado está sempre tratando de política, mesmo quando está em festa."


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