São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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ELIO GASPARI

O viés dos juízes pelos pobres é lenda

Num litígio judicial com o andar de baixo, o de cima tem até 45% mais chances de prevalecer

DOIS ADVOGADOS DA Universidade de São Paulo deram um tiro na testa da teoria segundo a qual o Judiciário está entre os produtores de uma "incerteza jurisdicional" que favorece o andar de baixo, inibe o crédito e o funcionamento do capitalismo em Pindorama. A trava foi apontada em 2004 num trabalho de três marqueses das ekipekonômicas: Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, todos com carreiras de sucesso na academia e na banca. A "incerteza jurisdicional" derivaria, entre outros fatores, de um viés dos juízes, que buscam promover a justiça social em litígios relacionados com o crédito e o respeito aos contratos.
A teoria amparou-se numa pesquisa feita na elite. Dirigida por Bolívar Lamounier, mostrou que 61% dos juízes entrevistados preferiam decidir a favor dos fracos. Outra, específica, de Armando Castellar, com um universo de 741 magistrados, confirmou o achado: a defesa da justiça social deve prevalecer na defesa do consumidor (55,4%) e nos contratos trabalhistas (45,8%). Lamounier e Castellar retrataram o que os juízes gostariam de fazer (ou gostariam que se dissesse que fazem).
Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, da Universidade de São Paulo, testaram a premissa da tese e foram ver o que acontece na vida real. Estudaram amostras de 181 decisões judiciais de São Paulo e outras 84 de 16 Estados. Lidaram com cálculos arcanos, como modelos de regressão e de análise binária, vulgo Probit. (Noves fora José Luís Bulhões Pedreira, morto em outubro, advogado que sabe matemática é raro como selo Olho-de-Boi.)
As pesquisas geraram dois trabalhos, um assinado pelos dois e outro, mais extenso, de Ribeiro. Resultou que se dois litigantes buscam a proteção de uma mesma lei, aquele que está no andar de cima tem até 45% mais chances de sair vitorioso. Se o contrato favorece o forte, tende a prevalecer. Quando favorece o fraco, esgarça.
Ribeiro, que teve o seu trabalho premiado pelo Ipea, foi mais longe: quando uma das partes pertence ao andar de cima local, tem entre 26% e 38% mais chances de prevalecer do que um grande grupo nacional ou internacional. Ele chamou esse fenômeno de "subversão paroquial da justiça". Numa terceira constatação, mostrou que, quanto maior a desigualdade social numa região, maior é o conforto do poderoso.
A chance de um cidadão de Santa Catarina conseguir a proteção de uma cláusula contratual num litígio com o andar de cima é três vezes maior do que a de um alagoano. Em bom português: "Não existe o favorecimento da parte mais fraca, ou seja, não há nenhuma evidência da aplicabilidade da hipótese da incerteza jurisdicional de Arida".
Em São Paulo, o Código de Defesa do Consumidor não protegeu uma cidadã contra um banco no caso de um contrato de financiamento de veículo. Já no Maranhão, o mesmo Código amparou uma empresa local que não pagou uma dívida de US$ 2,3 milhões. A outra parte era forte, mas na Suíça.
Descrita desse jeito, a pesquisa pode parecer uma pretensiosa transformação do pesquisador em instância de revisão judicial. O valor do trabalho está nos cálculos em quais se ampara, calafetando desvios da amostra, testando hipóteses e resultados.
No que se refere ao Judiciário, quem inibe o progresso econômico e social não é uma incerteza jurisdicional resultante de um favorecimento do andar de baixo. É a velha e boa "subversão paroquial" que privilegia o andar de cima do mundinho onde corre o litígio.


Serviço: Os dois trabalhos estão na internet e são contra-indicados como leitura de fim de semana.

"Os Juízes Brasileiros Favorecem a Parte Mais Fraca?" (Brisa Lopez de Mello Ferrão e Ivan César Ribeiro): http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/26

"Robin Hood Versus King John: Como os Juízes Locais Decidem Casos no Brasil?" (Ivan César Ribeiro): http://getinternet.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006-Profissional-01lugar-tema01.pdf (A versão em inglês dá menos trabalho. Basta passar no Google "Ivan Ribeiro Robin Hood")

FORÇA
De um veterano policial, diante do desembaraço coreográfico da Força Nacional de Segurança: "Daqui a pouco eles terão uma rainha da bateria".

HÉLIO CHAVEZ
O ministro das Comunicações, Hélio Costa, informa que pretende revogar a concessão do Banco Postal, comprada pelo Bradesco em 2001, numa lisa disputa. Só caduca em 2009, mas o doutor espera ter apoio do Banco Central. Costa diz que o banco será convidado para uma conversa: "A negociação vai ser feita tendo em vista o lucro extraordinário que o Bradesco já teve com o Banco Postal". O lucro do banco não é da conta do ministro. Se a privataria tucana vendeu a concessão a preço de banana, é aí que ele deve procurar a anomalia.

AVISO
O próximo contubérnio do PSDB com o PT poderá ocorrer para impor à sociedade um sistema eleitoral que inclua o voto de lista. Nessa malandragem as direções partidárias indicam uma parte da Câmara, sem a intervenção da escolha nominal dos eleitores. Antes da crise do mensalão os doutores dos dois partidos já estavam acertados para consumar esse golpe.

IWO JIMA
Quem quiser tirar mais proveito do filme "A Conquista da Honra", de Clint Eastwood, pode ler, antes ou depois, o emocionante livro do mesmo título, que inspirou o diretor. Para não estragar a história, que só fecha no livro, apenas um lembrete: a vida de John Bradley, o marinheiro que hasteou a bandeira no monte Suribachi mostra o que há de melhor na alma do americano comum. Ele morreu em 1994, como dono de uma pequena funerária.

NUESTRO GUIA
Arlindo Chinaglia chegou à presidência da Câmara com o pé na jaca. Durante seu discurso de candidato citou o caudilho argentino Juan Perón (1895-1974). Lembrou um conselho dado por ele à sua mulher Isabelita: "Fale muito sobre coisas, pouco sobre pessoas e nada sobre você". A recomendação era ambígua, o personagem era pífio e o contexto, devastador. Perón invocava códigos de quadrilheiros. Ele foi um ladravaz liberticida. Isabelita, a quem colocou na Vice-Presidência, era dançarina de cabaré panamenho. Ela criminalizou a política e devastou a economia da Argentina. Foi detida na Espanha há poucas semanas, por conta dos crimes praticados quando entregou o comando do país a um bruxo ladrão.
Perón tinha bons motivos para não falar de si. Amealhou centenas de milhões de dólares. Os mensalões de sua primeira mulher, Evita, renderam 65 quilos de ouro e 1.650 diamantes. Desde que deixou os palcos, Isabelita nunca trabalhou, mas vive bem em Madri, com criadagem e motorista. A Justiça argentina quer sua extradição.

REIS DO ATRASO
As operadoras de telefonia fixa estão nos tribunais para impedir a expansão da oferta de serviços de conexão sem fio para a internet. É o Wi-Fi. Os doutores da Telemar, da Telefônica e da Brasil Telecom merecem o prêmio George Selde. Ele era um lobista americano e agrupou os fabricantes de "carruagens sem cavalos" para tirar do mercado um veículo vendido por US$ 825, metade do preço dos similares. Os magnatas do cartel da Associação de Fabricantes de Automóveis sustentavam que Henry Ford não tinha licença para fazer carros.


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