São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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JANIO DE FREITAS

As várias indenizações


A compensação civilizada das vítimas de torturadores e assassinos, ou dos seus familiares, seria vê-los presos

ESTOU VIVO , para desgosto do Ziraldo. Ainda não pude atender ao desejo exposto por esse velho colega na solenidade que lhe deu uns trocados vitalícios, sob o nome de indenização: "Quero que morram os que criticam. São todos uns X". Não reproduzo a palavra final, por fidelidade ao conceito de que a linguagem do jornalismo não inclui as vulgaridades dos que a usamos. Já que estou vivo, embora jamais o tenha sido tanto quanto o rico Ziraldo, e a discussão das indenizações continua nos jornais, pode ser um assunto para me salvar no domingo.
Está criada muita confusão quanto a anistia e indenização. Indenizações aos que agiram contra a ditadura são, em princípio, injustificáveis. O que altera essa norma é a indecência da impunidade assegurada aos torturadores e assassinos de presos. A compensação civilizada e legítima de suas vítimas, ou familiares de vítimas, seria vê-los presos e condenados pelas leis do regime democrático.
As indenizações foram criadas como aparente reparação para a impunidade irreparável aos criminosos. Adotada, por sua vez, muito mais para atenuar os que aceitaram, incluídas várias vítimas da ditadura, a imoralidade da anistia estendida à autoria de crimes brutais. E criminosos até segundo suas próprias leis, como a Convenção de Genebra e os juramentos de formatura militar.
Contra essas indenizações, o que há a dizer -salvo algum caso de concessão incabível- é que submetem seus beneficiários a outra injustiça: são as menores indenizações, mesmo nos casos dos assassinatos que deixaram famílias condenadas a anos e anos de vida deformada em definitivo, pela pobreza e a conseqüente dificuldade de educação formal dos filhos. A perda de um pai e chefe de família por atividade sindicalista de oposição, por exemplo, está "indenizada" em R$ 100 mil.
Justificadas podem ser, também, as indenizações aos presos e maltratados, com tortura ou não, por deduções erradas dos captores. Caso, por exemplo, do jornalista Luiz Edgard de Andrade, sem militância alguma, nem sei se com algum sentimento oposicionista, mas preso e torturado por telefonar para a casa de um colega ocupada pela polícia. A propósito, vimo-nos quando cheguei a uma prisão do Exército, ainda de terno e gravata como próprio da época, entregue por um colega que, preso, fez entregas a granel. Ao sair, Luiz Edgard escreveu um pequeno texto sobre a experiência de preso inocente, e não se poupou a inclusão de uma frase falaciosa e mal intencionada: "...ao sair, cruzei com Janio de Freitas, elegante como sempre". À parte a hombridade de cada um, presos e torturados inocentes houve muitos, para quem a indenização pode ter sentido reparador, à falta da reparação típica nas democracias.
Diferente de tudo isso, e causa da polêmica sobre as indenizações, são as "reparações" vitalícias, e com generosos atrasados, a jornalistas e alguns outros. Esses, os jornalistas em especial, eram todos adultos, cientes das implicações do que fizessem, e autores de atos deliberados em plena consciência do seu significado e possíveis conseqüências. Indenização de quê e por quê, então? E são as maiores indenizações, algumas, só de atrasados, na ordem do milhão.
Os argumentos e cálculos de várias dessas indenizações chegam ao cômico. Quanto ganharia hoje, se não fosse a ditadura e hoje chegasse a cargo de direção? Logo, calcule-se pelos atuais salários de direção. Mas esses indenizados exerceram várias direções durante a ditadura, mais remunerados do que os salários então vigentes e hoje ganham até mais do que diretores. A revistinha "Pererê", feita pelo Ziraldo, dá outro exemplo repleto de casos semelhantes: quem decidiu fechá-la foi a editora "O Cruzeiro", não a ditadura. Só jornalistas torturados ou mortos por militância estão, para efeito das indenizações, em situação equivalente à das vítimas dos criminosos da repressão.
Para o bem de nós todos, só não sei se também o de Ziraldo, Millôr continua vivo: "Pensei que essas pessoas estavam lutando contra a ditadura, mas estavam fazendo investimento".


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