São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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DIPLOMACIA

Ex-diretor da Opaq critica atuação dos EUA

Bustani afirma que Estados Unidos controlam entidades com orçamento

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Destituído da direção geral da Opaq (organização para o fim das armas químicas) pelos EUA, retirado do posto provisório de cônsul-geral do Brasil em Londres pelo Itamaraty, o embaixador José Maurício Bustani, 57, tem a liberdade que nenhum outro diplomata tem: a de dizer o que pensa.
A sua verdade, a alguns meses do fim do governo que o puniu, é sobre a arrogância e as exigências com que os EUA se comportam nos organismos internacionais, como a ONU, o FMI, a Opaq. Um direito, segundo Bustani, que eles se atribuem por serem os maiores financiadores desses organismos.
"A maneira mais eficaz e mais direta de os EUA exercerem seu controle em tudo é via orçamento", disse Bustani, explicando por que o secretário do Tesouro norte-americano, Paul O"Neill, se sente no direito de dizer que o FMI não tem que dar ajuda nenhuma ao Brasil enquanto o dinheiro sai do país direto para a Suíça. Ele deu entrevista em Brasília. Leia os principais trechos:
 

Folha - O sr. já vinha tendo problemas com os EUA ou foi especificamente com o governo Bush?
Bustani -
Eu assumi a Opaq em 1997 porque tinha que ser alguém de país em desenvolvimento e da América Latina e eu fiz toda a minha carreira em organismos e questões multilaterais. Com o governo Clinton, havia diálogo. Com esse pessoal do Bush, a coisa saiu do controle. Não há diálogo, não há negociação. São daquela velha escola de "ou você está comigo, ou está contra mim". Queriam coisas impossíveis. Que, por exemplo, eu assinasse em branco relatórios sobre inspeções dentro dos EUA que não foram feitas, simplesmente porque os inspetores não conseguiram entrar, não viram nada, não inspecionaram nada. Como eu iria assinar?

Folha - O que não ficou claro é por que o sr. foi reconduzido ao cargo em 2000, um ano antes de vencer seu mandato, e logo depois veio a crise e a sua destituição.
Bustani -
Fui reconduzido por aclamação, com apoio dos EUA e da Rússia -veja bem. Significa que havia confiança no que eu fazia, apesar de ser um chato. Eles pensavam: "Ele vai exigir respeito à convenção [de controle das armas químicas", vai fazer tudo certinho, mas pelo menos nós já sabemos que ele não vai beneficiar nem um lado, nem outro".

Folha - Então...
Bustani -
Então apareceu esse John Bolton (subsecretário de Estado dos EUA para assuntos de desarmamento), que é um antimultilateralista, um anti-ONU, um prepotente, querendo mandar em tudo. Para você ter uma idéia, é aquele sujeito que defendeu publicamente que a ONU poderia perder dez andares que não faria a menor falta. É daqueles que não acreditam em nada e em nenhuma organização internacional em que os EUA não tenham 100% de controle. Isso vale para o Protocolo de Kyoto, para a Convenção de Armas Químicas, para a Corte Internacional Penal. O que eles queriam exigir de mim era a cessão de parte da soberania, a aceitação de um certo monitoramento, de uma certa limitação. E isso ninguém que tenha brios pode aceitar. A Opaq é uma organização internacional. Se eles querem transformá-la em norte-americana, que assumam isso, ponham a sede em Washington, uma placa na frente, e acabou-se. Mas, enquanto for internacional, eles não podem mandar em tudo.

Folha - Houve algum problema específico, pontual?
Bustani -
As coisas pioraram quando me recusei a passar informações sobre outros países para os EUA e desandaram de vez quando desviei o encarregado de orçamento de função, mandei três outros para a rua e rejeitei os funcionários que eles queriam impor. Ficaram irritadíssimos, inclusive porque o tal encarregado do orçamento estava lá desde 1993, antes da minha gestão.

Folha - Por que o sr. o transferiu?
Bustani -
Porque descobri que ele não entendia nada de orçamento, não atuava a favor dos interesses da organização e sim dos EUA e era manipulado politicamente. O orçamento vinha pronto dos EUA e ele apenas aplicava, e eu queria ampliar os investimentos nos países em desenvolvimento, especialmente para o uso da química para fins pacíficos, para desenvolver os países. O Bolton telefonou: "Bustani, isso não vamos admitir". Eu respondi: "Mas sou eu o diretor-geral e eu é que não admito que o sr. venha me dar ordens". Foi o começo do fim.

Folha - Sempre o orçamento...
Bustani -
Pode reparar em todos os organismos que se dizem internacionais, multilaterais, que o chefe da administração e do orçamento é sempre norte-americano. É para saber se os pobretões, os idiotas, os ignorantes estão usando o dinheiro direitinho. A maneira mais eficaz, mais direta de os EUA exercerem seu controle em tudo é via orçamento. Eles financiam entre 22% e 25% de organismos como a ONU, e em segundo lugar vem o Japão, que contribui com 10% a 21%. Como o Japão tem alinhamento automático com os EUA, os dois juntos somam praticamente metade do Orçamento. Fica muito difícil dirigir um organismo desses sem obedecer ao comando deles.

Folha - Qual a sua opinião sobre a declaração do secretário do Tesouro, Paul O'Neill, de que o Brasil precisa aprender a usar bem os recursos do FMI, sem mandá-los direto para contas na Suíça?
Bustani -
Nenhuma pessoa de bom senso pode achar razoável que um representante oficial de um país faça críticas a outro utilizando-se da sua posição. Isso causa um impacto imensurável no outro país, especialmente às vésperas de eleições e numa situação econômica que não está fácil. Ele foi muito infeliz. Não se pode admitir uma intromissão em assuntos internos nem que se acuse o país como um todo de corrupção.

Folha - Que tipo de exigência os norte-americanos faziam na Opaq?
Bustani -
Queriam impor como verdade a percepção de que eles são confiáveis o bastante para impedir reais inspeções no território deles, mas teríamos que ser muito eficientes inspecionando os demais países. A filosofia deles é: "Quem precisa de controle são os outros". E, pior, chegaram a exigir o que seria impossível cumprir: que o organismo repassasse aos funcionários norte-americanos os relatórios de inspeção feitos em outros países. É inadmissível!

Folha - Quais países?
Bustani -
Países sobre os quais os EUA nutriam enorme desconfiança. Depois esses países passaram a ter confiança em mim porque viram que eu não seria desleal com eles nem repassaria informações sobre eles para os EUA ou outro país. O grau de confiança em mim foi tão grande que, quando assumi a direção geral, havia 87 países filiados e, quando saí, já eram 145. O melhor exemplo de que eu fazia uma gestão não-discriminatória e apolítica foi a adesão de países como Jordânia, Iêmen, Emirados Árabes, Argélia, Marrocos, Irã e até o Sudão, que tinha sido atacado três anos antes pelos EUA como detentor de arsenal químico. Havia negociações com a Líbia, o Egito e o Iraque. Já foram feitas mais de 1.100 inspeções. Nunca tive problema com nenhum país, exceto os EUA.

Folha - Mesmo com os demais que pesquisam armas químicas?
Bustani -
Nem com eles.

Folha - Qual foi o papel do Brasil quando eles pediram sua cabeça?
Bustani -
Aí entra a segunda parte da minha odisséia, que foi a parte mais difícil, a mais penosa. O Bolton olhou na minha cara e disse que eu tinha que sair no dia seguinte, que fariam uma festa, prestariam homenagens. Como se eles fossem donos de Haia [sede da Opaq", da organização e do mundo, além de donos da minha vida. E eu respondi que não. Se quisessem, que me tirassem.

Folha - E sua mágoa com o Brasil?
Bustani -
A grande chave na disputa era o apoio da América Latina. Os representantes da Ásia e da África deixaram claro que não se mobilizaram porque a América Latina não se mobilizou. E por que não se mobilizou? Porque o Brasil não se empenhou. Se o Brasil não se empenhou, estava dizendo sub-repticiamente alguma coisa. Na votação, quem ficou comigo firmemente foram Rússia, China, Cuba, Irã, Belarus e México. O Itamaraty foi muito esperto: iludiu, dando a impressão que me apoiava. Não era verdade. Mas quero deixar claro que, no meu país, tive apoio do Congresso, da opinião pública e da imprensa.

Folha - Como recebeu a comunicação de que estava sendo retirado do posto de cônsul em Londres, como punição por uma entrevista?
Bustani -
Você pode imaginar. Estou sem posto, sem casa, sem função. Minha mobília está em contêineres num porto holandês.

Folha - O que espera agora?
Bustani -
Espero que um novo governo, seja de que partido for, encontre alguma utilidade para mim. Que corrija essa situação. Eu tenho 57 anos, 37 de carreira, e não perdi a confiança do meu país, como disseram no telegrama em que me retiraram de Londres. Nem sequer perdi a confiança do meu governo. Perdi a confiança de um setor da administração.



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