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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ ENTREVISTA
Cientista político defende que presidente da Câmara induz população à descrença e deve ser afastado do cargo para "saída decente" da crise
Oposição deve pedir desculpas por eleição de Severino, diz Lessa
FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL
O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, induz a população
ao cinismo, à descrença na política e na democracia. Portanto, se o
Congresso retirá-lo legalmente do
cargo, promoverá ação fundamental para um desfecho "minimamente decente" da crise.
O professor de Teoria Política
do Iuperj (Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro),
Renato Lessa, 51, faz a análise na
semana em que Severino ensaiou
abrandar punições aos investigados pelo esquema do "mensalão".
Ele defendeu que, assim como o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve pedir desculpas pela crise,
PSDB e PFL devem se desculpar
por terem elegido Severino.
Folha - A crise do "mensalão" e
subprodutos como a fala de Severino Cavalcanti na última semana
podem levar a população à descrença na democracia, ao alastramento do voto branco?
Renato Lessa - Esse cenário não
é de nenhum modo desprezível.
Por mais que torça pelo país, não
subscrevo o paradigma de Poliana de que crise é uma oportunidade de melhora. O grau de descrença, de dano vai depender da forma que sairmos da crise. Por
exemplo, seria fundamental para
uma saída minimamente decente
que o presidente da Câmara fosse
derrubado do cargo, legalmente,
como os deputados Gabeira e Aleluia, líder do PFL, têm falado. Isso
sinalizaria à sociedade uma intenção fortíssima de autodepuração
do Congresso. Não é por moralismo. Severino exibe o atraso da
política, é o indutor ao cinismo, à
descrença, traz danos indeléveis à
vida republicana. Movimentos
como esse podem sinalizar para a
sociedade que há uma intenção
de superar a crise.
Folha - Mas o subterrâneo da Câmara que ajudou a eleger Severino
permitiria que um processo como
esse fosse adiante?
Lessa - Não foram os subterrâneos da Câmara que elegeram o
Severino. Quem o elegeu foram o
PSDB e o PFL. Esses partidos devem ao país uma autocrítica, devem desculpas. Assim como é
fundamental que o presidente,
Dirceu, os responsáveis no PT peçam desculpas à população brasileira de maneira clara e inequívoca, é necessário que os políticos de
oposição peçam desculpas pelo
fato de terem se aproveitado daquela trapalhada inacreditável
que o PT proporcionou à Câmara,
quando foi disputar a presidência
com dois candidatos. Foi um cálculo oportunista. O movimento
não vai partir do baixo clero. Mas
é possível. À medida que Severino
dá a entender que vai retardar o
processo de cassação, abre caminho para que partidos que o
apoiaram, como o PSDB e o PFL,
tomem posições desse tipo.
Folha - A corrupção atual é efeito
da mistura de público e privado,
que o sr. já simbolizou em "Claudeci das Ambulâncias", candidato a
vice-prefeito de Campos (RJ) em
2004, ou tem algo de novo?
Lessa - O "Claudeci das Ambulâncias" está presente no que poderíamos chamar de fenomenologia da política brasileira [apoiado pelo casal Garotinho, Claudeci
das Ambulâncias responde na
Justiça Eleitoral por abuso do poder político e econômico]. Só o
nome já é praticamente um artigo
do código penal... Indica um cargo de representação, que está diretamente associado ao que no
código eleitoral se pune sob a figura da captura de sufrágio [compra de voto]. Há uma legião dos
"claudecis" nos Legislativos municipal, estadual e federal. O baixo
clero na Câmara é o "claudeci das
ambulâncias" que teve sucesso de
chegar à arena federal. Quando eu
e outros colegas dizemos que as
práticas de agora ocorreram no
passado, a idéia não é trivializar, é
justamente para apurar o foco crítico: 20 anos de democracia e as
relações políticas ainda usam procedimentos dessa natureza.
Folha - E a tese de que a crise é o
aparelhamento do governo pelo
PT, traço da esquerda autoritária?
Lessa - O PT acrescentou ao esquema traço de sua cultura própria, assim como o Sérgio Motta
[ministro das Comunicações de
FHC] acrescentava da cultura dele, Collor também. Quem não
lembra do Roberto Cardoso, o
Robertão, o que inventou "o é
dando que se recebe", da tropa de
choque de Sarney? Qual a diferença entre ele e Severino em termos
de construção de ética pública? O
que o PT acrescentou? A cultura
de aparelho da esquerda autoritária. O problema é que, em 20 anos,
a grande marcha do partido, de
militância, foi calcada em "nós
não faremos assim" [desvio ético]. Isso é que talvez dá uma fisionomia muito forte para a crise.
Folha - A espécie de mística em
torno de José Dirceu, que continua com poder no PT, também
vem dessa esquerda autoritária?
Lessa - É a mística dos homens
de ferro. Ele não é bolchevique.
Ele é um homem de aparelho burocrata partidário. Mesmo no
campo do stalinismo, os operadores internos eram homens de
idéias, muitas vezes estapafúrdias, mas que sinalizavam para a
sociedade mudanças de maneira
substantiva. Eu, que observo a política há algum tempo, não conheço uma idéia, um conceito de democracia de Dirceu. A cultura política do PT criou condições favoráveis para o surgimento desses
pequenos operadores, sem alma,
totalmente ligados à idéia de maximizar poder. É como se eles fossem "a esquerda", e não precisassem ser "de esquerda". Uma espécie de ocupação geográfica da esquerda, onde não se precisa propor. É a captura da idéia, a derrota
do pensamento, política sem espírito, que controla com base em
uma rede grande, leal, da ética do
segredo. Política de seita.
Folha - Qual discurso o sr. imagina que vai capturar o eleitorado
em 2006, seja com Lula ou com
candidatos da oposição?
Lessa - A vida política está muito desorganizada, e São Paulo está
tendo papel fundamental na desorganização. O PT está mergulhado na crise, com dificuldades
de tentar uma estratégia eleitoral.
O PSDB, que em princípio teria
condições de surfar na crise,
ameaça uma disputa intestina,
um movimento forte de boicote a
seu melhor candidato, que é o
prefeito José Serra. O que denota a
sua vocação para se tornar cada
vez mais conservador. Se o PT caminha ao centro, o PSDB faz o
mesmo à direita. Então faz sentido o isolamento interno de Serra,
em detrimento de figuras como o
próprio governador de São Paulo,
Geraldo Alckmin, que não é exatamente um homem de esquerda,
certo? O PSDB está cometendo
um grave de equívoco de supor
que o desgaste do PT é plataforma
suficiente para que chegue ao governo. E há incógnitas. E a esquerda? Os eleitores do PT estão à esquerda do governo. É ilusão acreditar que Lula ganhou a eleição
por causa da "Carta ao Povo Brasileiro". Quando foi feita, Lula já
estava com a mão na faixa. Esse
eleitorado está à deriva. É possível
imaginar que seja capturado por
discursos oportunistas de esquerda, insinceros, do tipo Garotinho.
Ídolos voláteis que vão operar na
falha do sistema político.
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