São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ ENTREVISTA

Cientista político defende que presidente da Câmara induz população à descrença e deve ser afastado do cargo para "saída decente" da crise

Oposição deve pedir desculpas por eleição de Severino, diz Lessa

FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, induz a população ao cinismo, à descrença na política e na democracia. Portanto, se o Congresso retirá-lo legalmente do cargo, promoverá ação fundamental para um desfecho "minimamente decente" da crise.
O professor de Teoria Política do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), Renato Lessa, 51, faz a análise na semana em que Severino ensaiou abrandar punições aos investigados pelo esquema do "mensalão".
Ele defendeu que, assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve pedir desculpas pela crise, PSDB e PFL devem se desculpar por terem elegido Severino.

Folha - A crise do "mensalão" e subprodutos como a fala de Severino Cavalcanti na última semana podem levar a população à descrença na democracia, ao alastramento do voto branco?
Renato Lessa
- Esse cenário não é de nenhum modo desprezível. Por mais que torça pelo país, não subscrevo o paradigma de Poliana de que crise é uma oportunidade de melhora. O grau de descrença, de dano vai depender da forma que sairmos da crise. Por exemplo, seria fundamental para uma saída minimamente decente que o presidente da Câmara fosse derrubado do cargo, legalmente, como os deputados Gabeira e Aleluia, líder do PFL, têm falado. Isso sinalizaria à sociedade uma intenção fortíssima de autodepuração do Congresso. Não é por moralismo. Severino exibe o atraso da política, é o indutor ao cinismo, à descrença, traz danos indeléveis à vida republicana. Movimentos como esse podem sinalizar para a sociedade que há uma intenção de superar a crise.

Folha - Mas o subterrâneo da Câmara que ajudou a eleger Severino permitiria que um processo como esse fosse adiante?
Lessa
- Não foram os subterrâneos da Câmara que elegeram o Severino. Quem o elegeu foram o PSDB e o PFL. Esses partidos devem ao país uma autocrítica, devem desculpas. Assim como é fundamental que o presidente, Dirceu, os responsáveis no PT peçam desculpas à população brasileira de maneira clara e inequívoca, é necessário que os políticos de oposição peçam desculpas pelo fato de terem se aproveitado daquela trapalhada inacreditável que o PT proporcionou à Câmara, quando foi disputar a presidência com dois candidatos. Foi um cálculo oportunista. O movimento não vai partir do baixo clero. Mas é possível. À medida que Severino dá a entender que vai retardar o processo de cassação, abre caminho para que partidos que o apoiaram, como o PSDB e o PFL, tomem posições desse tipo.

Folha - A corrupção atual é efeito da mistura de público e privado, que o sr. já simbolizou em "Claudeci das Ambulâncias", candidato a vice-prefeito de Campos (RJ) em 2004, ou tem algo de novo?
Lessa
- O "Claudeci das Ambulâncias" está presente no que poderíamos chamar de fenomenologia da política brasileira [apoiado pelo casal Garotinho, Claudeci das Ambulâncias responde na Justiça Eleitoral por abuso do poder político e econômico]. Só o nome já é praticamente um artigo do código penal... Indica um cargo de representação, que está diretamente associado ao que no código eleitoral se pune sob a figura da captura de sufrágio [compra de voto]. Há uma legião dos "claudecis" nos Legislativos municipal, estadual e federal. O baixo clero na Câmara é o "claudeci das ambulâncias" que teve sucesso de chegar à arena federal. Quando eu e outros colegas dizemos que as práticas de agora ocorreram no passado, a idéia não é trivializar, é justamente para apurar o foco crítico: 20 anos de democracia e as relações políticas ainda usam procedimentos dessa natureza.

Folha - E a tese de que a crise é o aparelhamento do governo pelo PT, traço da esquerda autoritária?
Lessa
- O PT acrescentou ao esquema traço de sua cultura própria, assim como o Sérgio Motta [ministro das Comunicações de FHC] acrescentava da cultura dele, Collor também. Quem não lembra do Roberto Cardoso, o Robertão, o que inventou "o é dando que se recebe", da tropa de choque de Sarney? Qual a diferença entre ele e Severino em termos de construção de ética pública? O que o PT acrescentou? A cultura de aparelho da esquerda autoritária. O problema é que, em 20 anos, a grande marcha do partido, de militância, foi calcada em "nós não faremos assim" [desvio ético]. Isso é que talvez dá uma fisionomia muito forte para a crise.
Folha - A espécie de mística em torno de José Dirceu, que continua com poder no PT, também vem dessa esquerda autoritária?
Lessa - É a mística dos homens de ferro. Ele não é bolchevique. Ele é um homem de aparelho burocrata partidário. Mesmo no campo do stalinismo, os operadores internos eram homens de idéias, muitas vezes estapafúrdias, mas que sinalizavam para a sociedade mudanças de maneira substantiva. Eu, que observo a política há algum tempo, não conheço uma idéia, um conceito de democracia de Dirceu. A cultura política do PT criou condições favoráveis para o surgimento desses pequenos operadores, sem alma, totalmente ligados à idéia de maximizar poder. É como se eles fossem "a esquerda", e não precisassem ser "de esquerda". Uma espécie de ocupação geográfica da esquerda, onde não se precisa propor. É a captura da idéia, a derrota do pensamento, política sem espírito, que controla com base em uma rede grande, leal, da ética do segredo. Política de seita.
Folha - Qual discurso o sr. imagina que vai capturar o eleitorado em 2006, seja com Lula ou com candidatos da oposição?
Lessa - A vida política está muito desorganizada, e São Paulo está tendo papel fundamental na desorganização. O PT está mergulhado na crise, com dificuldades de tentar uma estratégia eleitoral. O PSDB, que em princípio teria condições de surfar na crise, ameaça uma disputa intestina, um movimento forte de boicote a seu melhor candidato, que é o prefeito José Serra. O que denota a sua vocação para se tornar cada vez mais conservador. Se o PT caminha ao centro, o PSDB faz o mesmo à direita. Então faz sentido o isolamento interno de Serra, em detrimento de figuras como o próprio governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que não é exatamente um homem de esquerda, certo? O PSDB está cometendo um grave de equívoco de supor que o desgaste do PT é plataforma suficiente para que chegue ao governo. E há incógnitas. E a esquerda? Os eleitores do PT estão à esquerda do governo. É ilusão acreditar que Lula ganhou a eleição por causa da "Carta ao Povo Brasileiro". Quando foi feita, Lula já estava com a mão na faixa. Esse eleitorado está à deriva. É possível imaginar que seja capturado por discursos oportunistas de esquerda, insinceros, do tipo Garotinho. Ídolos voláteis que vão operar na falha do sistema político.

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