São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2004

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ENTREVISTA

FÁBIO WANDERLEY REIS

Para cientista político, eleitor simplifica sistema partidário com lógica sem ideologia

PT e PSDB fazem polarização de "pobres" e "ricos", diz analista

Katia Lombard - 27.mar.2002/"O Tempo"
O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da UFMG, que não descarta uma volta de FHC a disputas eleitorais


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O sistema político-partidário do país sai mais consolidado das eleições municipais, com PT e PSDB polarizando uma lógica que é menos ideológica do que contraposições singelas e bipolares por parte do eleitorado -não a "esquerda" e a "direita", mas "os pobres" e "os ricos"-, diz o cientista político Fábio Wanderley Reis.
Nessa oposição, e apesar das políticas concretas do PT rotuladas "neoliberais", a sigla de Lula entraria como o "partido dos pobres". "O que torna um Partido dos Trabalhadores atraente para grande parcela dos eleitores ainda são mecanismos do mesmo tipo dos que levaram à afirmação do PTB de Vargas, o "pai dos pobres'", diz o professor emérito da UFMG.
O quadro partidário mais estável também explica, para Reis, o enfraquecimento testemunhado nestas eleições de figuras "personalistas" como Paulo Maluf (PP) e Anthony Garotinho (PMDB).
Na entrevista à Folha, Reis afirma ainda não descartar uma volta de Fernando Henrique Cardoso a disputas eleitorais. "Ele ainda é a figura de maior peso no PSDB, inclusive no plano eleitoral."
A seguir, trechos da conversa.
 

Folha - O país sairá das eleições municipais com um quadro político-partidário mais consolidado?
Fábio Wanderley Reis -
O fato de que a disputa eleitoral venha se dando repetidamente com o protagonismo de PT e PSDB pode ter conseqüências positivas. Primeiro, cria a perspectiva de que venha a ocorrer uma simplificação "natural" do sistema partidário, com o predomínio de algumas identificações duradouras. Além disso, é bem claro o que a hegemonia compartilhada especificamente do PT e do PSDB representa de positivo em confronto com a variedade de partidos e lideranças marcadas por personalismo, clientelismo ou pragmatismo excessivo e sem consistência que temos tido há muito tempo.
Acho que esse aspecto mostra com clareza o que há de equivocado e sonhador -embora se trate de gente certamente bem intencionada- na posição adotada por alguns intelectuais de São Paulo que lançaram manifesto propondo o voto nulo, diante da suposta falta de alternativas reais na forma tomada pela disputa eleitoral na cidade, ou talvez no país como um todo. Seria preciso que esses intelectuais prestassem um pouco mais de atenção nas condições concretas do processo político-eleitoral no país, em que continua sendo possível a um Collor empolgar de repente a Presidência da República com alguns truques de marketing. É simples cegueira não perceber o avanço representado pelo fato de que, dadas as limitações do nosso eleitorado popular, as espertezas dos Dudas Mendonças ajudem partidos como PT e PSDB, e não meros Collors e Malufs.
Em conexão com isso, outra coisa em que prestar atenção é até que ponto ocorre o desgaste real ou a inviabilização de lideranças personalistas e populistas. Maluf se desgasta em São Paulo, Antonio Carlos Magalhães tem dificuldades em Salvador, Garotinho tem dificuldades em municípios que controlava no Rio de Janeiro.

Folha - Como isso se acomoda com o troca-troca partidário que se seguiu à vitória de Lula?
Reis -
Não pretendo dizer que o país esteja em marcha batida para o bipartidarismo -até porque provavelmente vamos ter vitórias expressivas de outros partidos, que não o PT ou o PSDB, em várias cidades importantes. O jogo do "presidencialismo de coalizão" (com o presidente tendo de buscar apoio em coalizões mais ou menos heterogêneas) continua a acontecer e provavelmente vai continuar pelo menos por algum tempo, e as trocas de partidos mencionadas são parte dele.
Apenas acho que o protagonismo continuado do PT e do PSDB pode resultar em ampliar a identificação do eleitorado popular com eles, o que permitiria falar de certa tendência a que se consolide a polaridade. Por outro lado, isso me parece ajustar-se a certo simplismo nas percepções que o eleitorado popular tem do universo político, no qual ocorrem justamente contraposições singelas e bipolares -não a "esquerda" e a "direita", como andou sustentando um livro equivocado do André Singer, mas "os pobres" e "os ricos", por exemplo, como as pesquisas mostram há tempos.

Folha - Se Serra ganha, ele se consolida como líder nacional de oposição a Lula? Tem cacife para isso?
Reis -
Acho que seria precipitado falar de "consolidação" dele como líder da oposição a Lula. Afinal, por importante que seja a Prefeitura de São Paulo, no próprio PSDB há os governadores [Geraldo] Alckmin e Aécio Neves, há um Tasso Jereissati -além da figura especial de Fernando Henrique Cardoso, que, com seu prestígio, tem grande influência mesmo não estando exercendo cargo político. E não parece que a eventual volta dele à disputa eleitoral seja algo fora de cogitação.
Não se trata, obviamente, de entrar na cabeça dele. Mas é uma liderança com potencial eleitoral. Ganhou duas eleições no primeiro turno. Ainda tem a imagem positiva. A questão que se coloca é se ele seria animado a ir para a disputa outra vez. Tenho impressão que ele tem condições de preservar essa imagem, esse prestígio, um pouco à distância da confusão. Mas, dependendo de como as coisas evoluam -se de repente a economia se torna ruim-, posso imaginar quadros em que FHC seria levado a reconsiderar. Ele ainda é a figura de maior peso no PSDB, inclusive no plano eleitoral.

Folha - Em relação a quê pode se dar a oposição PT-PSDB, já que os partidos se aproximaram tanto do ponto de vista ideológico?
Reis -
Creio que a aproximação no que se refere à política econômica é uma imposição das circunstâncias mundiais. O deslocamento para políticas rotuladas como "neoliberais" se observou no caso de vários governos em princípio "de esquerda".
Mas acho que alguma diferença subsiste entre PSDB e PT pelo fato de que o PT -por suas origens, suas ligações com o movimento sindical e certos movimentos populares, seu ideário socialista inicial- tende a ser mais sensível à problemática social do país e a ser mais cobrado quanto ao seu compromisso a esse respeito.
Trata-se provavelmente daquilo que meu amigo José Arthur Giannotti andou chamando de "narcisismo" numa entrevista confusa à Folha um dia desses, e que corresponderia à preservação de uma auto-imagem revolucionária pelo PT. É possível contrapor à leitura totalmente negativa de Giannotti a observação de que a auto-imagem revolucionária e a identificação com objetivos ambiciosos "mumificados" e remetidos ao milênio foi parte importante, em vários casos, da história de partidos social-democráticos europeus que aprenderam a conviver pragmática e realisticamente com o capitalismo e a administrá-lo com sensibilidade social. Alguma utopia tem seu lugar, se não levar a que se perca o pé da realidade.

Folha - Por que se dá esse aparente enfraquecimento das lideranças personalistas?
Reis -
Acho que elas tendem a se enfraquecer justamente na medida em que haja identificação mais intensa dos eleitores com os partidos como tal. Naturalmente, tendo em vista as limitações nas relações do eleitorado popular do país com a política, seria bobagem pretender ler isso como significando que os eleitores se tornam mais "ideológicos". No fundo, o que torna um Partido dos Trabalhadores atraente para grande parcela dos eleitores ainda são mecanismos do mesmo tipo dos que levaram à afirmação do PTB de Vargas, o "pai dos pobres", ou à afirmação do MDB quando as circunstâncias lhe permitiram surgir aos olhos dos eleitores como o "partido dos pobres". Mas a identificação partidária, ainda assim, pode vir a representar um obstáculo ao puro populismo personalista.

Folha - Se o PT pode ser identificado como um "partido dos pobres", o que o PSDB pode ser?
Reis -
Nas condições do eleitorado brasileiro, em que você tem que entrar num poço popular, partido nenhum pode escapar de atender a esse perfil do eleitor. Há um componente populista que é fatal às tentativas de se fazer política nesse país. Falando do PT: não vai ser com base numa retórica complicada de esquerda que o partido vai ganhar. Se ganhar, vai fazê-lo apesar da retórica. É na medida em que cria uma sinonímia na cabeça do eleitor com o partido dos pobres, etc., que ele vai penetrar.


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