São Paulo, sexta-feira, 04 de novembro de 2005

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VÔO DA ÁGUIA

Presidente venezuelano pede fim de negociações sobre Alca e vira personagem central de confronto com os EUA

Chávez transforma Lula em coadjuvante

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MAR DEL PLATA

O presidente venezuelano, Hugo Chávez, seqüestrou, na prática, a 4ª Cúpula das Américas, que começa hoje em Mar del Plata, no litoral argentino, transformando o Brasil e seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, em atores coadjuvantes pela primeira vez no processo de cúpulas hemisféricas, lançado em 1994.
Chávez utilizou a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) para se transformar, bem de acordo com seu estilo teatral de fazer política, no personagem central do confronto com os Estados Unidos. Nas cúpulas anteriores, era dado pelo Brasil o contraponto às posições norte-americanas, mesmo quando os presidentes de ambos os países eram amigos, como Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso.
Agora, ao contrário, até grupos sociais que sempre estiveram próximos do PT reconhecem que a contraposição é George Walker Bush x Hugo Chávez.
O venezuelano foi o único presidente convidado para discursar na manifestação de protesto contra a cúpula, a realizar-se hoje, no Estádio Ciudad de Mar del Plata. Explica Sílvia Ferreira, uma das responsáveis pelos movimentos que organizam o protesto: "Nós rechaçamos Bush como o pior governante das Américas e antepomos a ele o exemplo da Venezuela como alternativa".
Sílvia é dirigente de "Barrios de Pie", grupo comunitário nascido da crise argentina e participante do Fórum Social Mundial, em cujas primeiras edições, em Porto Alegre, Lula reinava isoladamente como dirigente político.
Agora, Sílvia remete Lula e também o presidente esquerdista uruguaio, Tabaré Vázquez, para segunda época em matéria de busca da "utopia": "Nos outros países [além da Venezuela], os processos estão em construção".
A proposta de Chávez para a Alca é simples: sepultá-la de vez. A negociação, com o objetivo de constituir o que seria a maior zona de livre comércio do planeta, abrangendo os 34 países das Américas, menos Cuba, foi lançada na primeira cúpula (Miami, 1994), e avançou aos solavancos até fevereiro de 2004. Naquele mês, os negociadores suspenderam reunião em Puebla (México) prometendo reiniciá-la em 15 dias e nunca conseguiram fazê-lo.
Nesse cenário, a proposta de Chávez tem até lógica, como admitem, em conversas reservadas, diplomatas brasileiros: "O fato é que a negociação está paralisada".
O próprio Bush, presidente do país que lançou o processo, admitiu em recente entrevista a jornalistas latino-americanos que a negociação está estancada e que o mais importante no momento era avançar nos entendimentos da chamada Rodada Doha, de âmbito global, ainda que esta também enfrente turbulências fortes.
Se a negociação está paralisada, como admitem os dois grandes parceiros da Alca (EUA e Brasil), qual a dificuldade de o Brasil aceitar a posição de Chávez?
Simples: é radical demais para uma diplomacia que se orgulha de ter levado ao melhor nível, no período Lula, o relacionamento com os EUA, divergências comerciais à parte, porque são naturais entre grandes parceiros.
Por isso o Brasil foi atropelado não apenas pela Venezuela de Chávez mas até pela Argentina de Néstor Kirchner, que, anteontem, surgiu com uma proposta que não fica, na prática, muito longe do sepultamento da Alca pregado pelo polêmico líder venezuelano. Mais: a proposta foi feita em nome do Mercosul, portanto também em nome do Brasil.
O texto diz: "Tomamos nota das dificuldades que surgiram na negociação da Alca e evitaram que se cumprisse o compromisso de concluir as negociações em janeiro de 2005 [prazo definido em 1994 em Miami]".
Mais: "Reconhecemos que não estão dadas as condições necessárias para chegar a um acordo" e "solicitamos aos ministros de Comércio que avaliem o processo e façam suas recomendações".
Com todo o invólucro da linguagem diplomática, aproxima-se bastante de enviar a Alca ao necrotério, como propõe Chávez, ou, no mínimo, à UTI.
A reação de norte-americanos e canadenses à proposta do Mercosul foi dura. "Criou-se um estado de espírito terrível na sala", contou um delegado do Canadá a um pequeno grupo de jornalistas, com o compromisso de que seu nome não fosse divulgado.
Criou-se, mais que um "estado de espírito terrível", um impasse em torno de um assunto que é permanente fonte de tensões entre Brasil e EUA, mas, agora, com o Brasil a reboque de seu sócio no Mercosul, a Argentina, e de eventual futuro sócio, a Venezuela.

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