São Paulo, quarta-feira, 04 de dezembro de 2002

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ELIO GASPARI

Uma experiência: Profeta-presidente

Que Lula não desça do palanque, entende-se. Entende-se até que ele fique lá por quatro anos, visto que sua fala alegra, agrada e conforta. Faz mais leves as almas e dá a todos que o ouvem a sensação de estarem ajudando a reduzir as injustiças sociais brasileiras. O que não se entende é que suba em palanque até na Argentina.
Deixando-se de lado a propriedade da discussão dos problemas brasileiros fora das fronteiras nacionais, fica a impressão de que o presidente eleito estava sem assunto ao se encontrar com Eduardo Duhalde na residência de Olivos. Não tinha do que falar e saiu-se novamente com o paradoxo nacional, no qual milhões de pessoas passam fome numa economia que está entre as dez maiores do mundo. Lula tem toda razão, mas, se ele passar os próximos quatro anos repetindo esse mote, não encherá um só prato de comida. Ficará no palavrório.
Quem já acompanhou uma maratona verbal de Lula sabe que ele borda uma retórica de blocos. Vale-se deles para esquentar a audiência. Se um bloco não dá resultado, tira outro, mais quente, e assim vai, até afinar a sua fala com o ouvido do público. Em palanque de candidato, maravilha. Em pódio de presidente, vai mal.
Em agosto de 1998, quando Lula e FFHH estavam empatados nas pesquisas eleitorais, o presidente argentino Carlos Menem deu-se a exageros, acusando-o de defender uma desvalorização do real que acabaria com o Mercosul. (Quem desvalorizou o real e quebrou as pernas do Mercosul foi os sacrossanto mercado.) Quatro anos depois, vitorioso, Lula foi à Argentina e relembrou o episódio, dando o troco. Pena. Assim como Menem foi inconveniente metendo-se na política brasileira, Lula foi impróprio divertindo-se com as tolices do ex-presidente.
A certa altura, Lula foi mais que impróprio. Foi intrometido, professoral e messiânico. Veja-se o o que disse:
"O povo que conseguiu, até a metade do século passado, fazer um dos países mais promissores do mundo, não tem o direito de perder a esperança, não tem o direito de desistir. Eu peço a Deus que ilumine a consciência dos argentinos para que possam escolher um homem sobretudo ético e comprometido com os anseios de liberdade e soberania da República da Argentina. (...) Estou certo de que vocês não desistirão, como nós não desistimos no Brasil".
Substitua-se "no Brasil" da última frase por "nos Estados Unidos". Se George Bush tivesse dito isso, que juízo mereceria? Quem é o presidente dos Estados Unidos (ou do Brasil) para dizer ao povo argentino (ou sueco) o que ele deve fazer nas eleições presidenciais de abril do ano que vem?
Em benefício de Lula, há no seu discurso muito mais um desejo de projetar uma dimensão moral do que de se intrometer na vida alheia. Deriva de uma personalidade vitoriosa que, mesmo tendo disputado um cargo de natureza executiva, vê em seu triunfo um clarão de ascendência espiritual. Novamente, deve-se dizer que isso não faz mal a ninguém, desde que sua futura administração execute corretamente aquilo que o Estado brasileiro precisa que seja executado.
Fica uma dúvida. Lula estaria tentando ser, ao mesmo tempo o pastor Martin Luther King e o presidente Lyndon Johnson. O primeiro teve um sonho, mas foi o segundo quem viu nas multidões do pastor uma força que exigia a regeneração do sociedade política americana. Foi Johnson quem tocou a quitanda. Profetas como King, os há, mas profeta-presidente é uma experiência nova.


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