São Paulo, segunda-feira, 05 de fevereiro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/ROBERTO AZEVEDO

EUA seguem na contramão da liberalização comercial

Chefe dos negociadores brasileiros para a Rodada Doha, Roberto Azevedo critica posição de países ricos e vê poucas chances de acordo sair neste ano

Leopoldo Silva/Folha Imagem
O subsecretário para assuntos econômicos do Itamaraty, Roberto Azevedo, que pede mais liderança de EUA e EU na Rodada Doha


CLÁUDIA DIANNI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Responsável por chefiar os negociadores brasileiros na retomada das discussões da Rodada Doha, o subsecretário de Assuntos Econômicos e Tecnológicos do Itamaraty, ministro Roberto Azevedo, admite que as negociações são muito difíceis e podem se prorrogar até 2008. "Negociar até abril [como defendem alguns líderes] é um cenário de um otimismo de que eu não compartilho." Com as discussões paralisadas em julho do ano passado, a retomada das negociações para a liberalização do comércio mundial foi uma promessa dos líderes que participaram de reunião em Davos, ao fim do Fórum Econômico Mundial, no mês passado.
Com eleições em abril na França, mudança na composição do Congresso americano -que põe em risco a autorização do Executivo de negociar- e uma profusão de desacordos, esse trabalho não será fácil. Para Azevedo, os Estados Unidos estão na contramão da liberalização do comércio mundial e a UE (União Européia) precisa "vender" as reformas agrícolas para o público interno. Por isso, o bloco precisa de concessões em outras áreas.
Ele explica que o Brasil tem dificuldades em fazer acordos bilaterais com grandes mercados porque, assim como a China é a grande ameaça industrial, o Brasil é o "bicho-papão" do agronegócio. Na entrevista que concedeu à Folha na quinta passada, disse constatar agora uma vontade política inequívoca de concluir a rodada.  

FOLHA - Ainda não foi feito um anúncio oficial de que a Rodada Doha será retomada. Há riscos de isso não acontecer?
ROBERTO AZEVEDO
- Os riscos são baixos. Os membros querem a retomada. Não vejo nenhuma perspectiva de não ser formalizada.

FOLHA - Até onde ela pode chegar sem a autorização do Congresso americano para o Executivo fazer negociações, a chamada TPA (Trade Promotion Authority)?
AZEVEDO
- Não há uma vinculação explícita entre as duas coisas. Ela será retomada com ou sem a renovação da TPA. Mas os êxitos da conclusão dependem da renovação da TPA, ou seja, ela está sendo retomada com incertezas sobre o futuro da TPA. Se a TPA for renovada, melhoram as perspectivas de um desfecho positivo, pois o acordo não será emendado no Congresso americano depois.

FOLHA - O que está atravancando a rodada?
AZEVEDO
- A aproximação das posições. As posições em que nós estávamos em julho de 2006 e que levaram ao impasse, tanto em apoio doméstico como em acesso a mercados, continuam sendo a base das posições atuais nos EUA, na UE e no G20 [grupo de países em desenvolvimento]. O que mudou é que mais recentemente conseguimos constatar uma vontade política inequívoca de concluir a rodada. Isso ficou transparente nas declarações dos presidentes em Davos.

FOLHA - Dá para apontar culpados?
AZEVEDO
- Tenho vários candidatos, e nenhum deles somos nós. Os grandes líderes. As grandes economias mundiais têm que dar o sinal de liderança necessário.

FOLHA - O que os EUA querem?
AZEVEDO
- Os EUA vêem caminhando um pouco na contramão da liberalização do comércio sobretudo agrícola, porque lá os gastos com subsídios agrícolas vêm subindo, enquanto todos os outros estão descendo. Estamos tentando frear e reverter essa tendência. Eles querem compensar a perda que o agricultor americano vai sofrer com a queda dos subsídios com maior acesso a terceiros mercados para seus produtos agrícolas, bens industriais e serviços.

FOLHA - E a União Européia?
AZEVEDO
- Os europeus fizeram uma reforma agrícola importante antes da rodada, mas incompleta, e, no fundo, eles querem vender a reforma para o público interno. Eles querem ganhos em outros setores que permitam a aprovação interna das reformas. Ou seja, que compensem uma situação em agricultura que eles vêem como perder ou perder. Então eles também precisam ter ganhos em outros setores, daí a ênfase deles em que os EUA reduzam também o seu apoio doméstico, para evitar que a Europa comece a se desarmar unilateralmente.

FOLHA - E o G20? Esse grupo tem países em desenvolvimento com diferentes perfis.
AZEVEDO
- O G20 procura que essa rodada faça jus ao nome "Rodada de Desenvolvimento". Quer que os países ricos parem de distorcer o comércio agrícola. Não é justo que um agricultor de um país em desenvolvimento esteja competindo com o Tesouro de um país rico. Quer que o protecionismo deixe de ter barreiras intransponíveis, para que eles tenham capacidade de acesso aos mercados. E em bens industriais e serviços querem resultados equilibrados. E estão dispostos a liberalizar aí também e querem ver liberalização em muitos bens industriais nos países ricos. A Índia, por exemplo, quer concessões para entrar com seus serviços em países industrializados.

FOLHA - Brasil e Índia lideram o mesmo grupo, o G20, mas um quer liberalizar e o outro quer proteger a agricultura.
AZEVEDO
- Há interesses distintos. A estrutura de produção agrícola no Brasil é completamente diferente da da Índia, que tem um sistema de pequena produção e mais de 200 milhões de agricultores. Não é algo simples de resolver, mas não é razão de conflito, mas de composição difícil. Assim como os países ricos terão uma lista de produtos sensíveis, a Índia terá os seus, como o Brasil também terá suas sensibilidades mais ou menos protegidas na área de serviços e industrial. Ninguém pede a ninguém sacrifício que coloque em risco o bem-estar da sua população.

FOLHA - A retomada do Congresso americano pelos democratas vai dificultar as negociações? Eles têm fama de protecionistas.
AZEVEDO
- O que eles dizem é que uma boa parte dessas discussões são suprapartidárias, mas que respondem a lobbies específicos dos setores e que essa rede tende a ser mais eficiente do que as diferenças ideológicas entre republicanos e democratas. Acho que tem um processo de acomodação e isso terá impacto. Por exemplo, os democratas tradicionalmente são mais afirmativos quanto à necessidade da inclusão de cláusulas trabalhistas e ambientais. É possível que eles as incluam na TPA.

FOLHA - Quais seriam as conseqüências?
AZEVEDO
- Na Rodada Multilateral, as questões relativas a ambiente e trabalho já foram discutidas há muito tempo. Revisar isso pressuporia que essas cláusulas pudessem existir no contexto multilateral. Se a TPA for renovada com demanda de inclusão dessas cláusulas em Doha, será um golpe possivelmente fatal às negociações. Mas acho que isso não vai acontecer.

FOLHA - Isso pode significar que o Brasil, por exemplo, poderia ser questionado na OMC por supostamente vender produtos com trabalho escravo ou que provoquem desmatamento?
AZEVEDO
- Depende de como seriam incorporadas as regras. Mas não seria descabido pensar que um país que não cumprisse as regras trabalhistas venha ser acionado no mecanismo de solução de controvérsia e pudesse até ser retalhado.

FOLHA - A França, o país mais protecionista em agricultura, tem eleições em abril. Isso pode dificultar as negociações?
AZEVEDO
- Administrar essa situação é uma tarefa da Comissão Européia. A composição dentro da UE nunca foi fácil em agricultura. A França antes das eleições e depois das eleições continuará sendo protecionista em agricultura.

FOLHA - O que acontece se a rodada falhar? Pode afetar a credibilidade da OMC?
AZEVEDO
- Tenta-se de novo. Uma eventual falha apenas significa que, para chegar a um acordo, a OMC precisa passar por mais testes e acomodar mais interesses. Mas não vejo risco para a existência da OMC. Sobretudo para os países em desenvolvimento, que não têm excedente de poder, o cenário internacional comercial hoje é, sem dúvida, muito melhor do que antes da OMC.

FOLHA - No Brasil, o setor agrícola acusa o governo de usá-lo para proteger a indústria, que se queixa de ser usada como moeda de troca para abrir o mercado agrícola.
AZEVEDO
- Quando atribuímos ênfase à agricultura foi porque essa rodada só existe por causa da agricultura. O Acordo de Agricultura deveria ser revisto até 2001. A UE disse que, para isso, eles precisavam vender internamente as reformas com ganhos em outras áreas. Por isso, a rodada foi mais ampla. Fazer uma rodada que não leva aos resultados agrícolas não justifica sua origem. O Brasil não está fazendo uma opção apenas na área agrícola nem está usando isso como escudo para a liberalização industrial. Mas é em agricultura onde estão as maiores distorções. Os países ricos subsidiaram pesadamente sua agricultura, protegeram com barreiras fenomenais suas fronteiras contra importações agrícolas, e chegou a hora de isso mudar.

FOLHA - Quando a liberalização do comércio mundial for ampla e incluir o setor de serviços, o que vai mudar na vida do brasileiros? Vai haver hospitais e escolas estrangeiras, por exemplo?
AZEVEDO
- Serviços de interesse nacional como educação e saúde não são negociáveis. São áreas de responsabilidade do Estado, que não pode perder o controle sobre esse tipo de serviço. Mas já temos uma área de serviços muito aberta, como o sistema bancário e de telecomunicações, por exemplo.


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