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MEMÓRIA DA DITADURA
Aos 19, 20 anos, achava que eu estava salvando o mundo
Dilma diz não ter a mesma cabeça da época em que era guerrilheira, mas se orgulha de não ter mudado de lado, e sim de métodos
Reprodução
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Ficha de Dilma após ser presa com crimes atribuídos a ela, mas que ela não cometeu
FERNANDA ODILLA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
UMA DAS três sentenças de prisão de Dilma
Rousseff, de 1971, a descreve como a inimiga que "jamais esmoreceu" desde que
ingressou na luta armada contra o regime
instalado pelo golpe de 31 de março de 1964 e dissolvido 21 anos depois. Leia a entrevista da ministra sobre
a vida na clandestinidade durante a ditadura.
FOLHA - A sra. se lembra dos planos
para sequestrar Delfim e montar fábrica de explosivos?
DILMA ROUSSEFF - Ah, pelo amor
de Deus. Nenhuma das duas eu
lembro. Nunca ninguém do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica me perguntou isso.
Não sabia disso. Acho que não
era o que a gente [queria], não
era essa a posição da VAR.
FOLHA - A sra. logo percebeu que a
clandestinidade seria o caminho natural?
DILMA - Percebi. Todo mundo
achava que podia haver no Brasil algo muito terrível. O receio
de que um dia eles amanheceriam e começariam a matar era
muito forte. Sou bem velha, comecei em 1964. Com o passar
do tempo, o Brasil foi se fechando, as coisas foram ficando cada
vez mais qualificadas como
subversivas. Era subversivo até
uma música, uma peça de teatro, qualquer manifestação de
rua. Discutir reforma universitária era subversivíssimo. Coisas absolutamente triviais hoje
eram muito subversivas.
FOLHA - Foi escolha da sra. o trabalho no setor de mobilização urbana?
DILMA - Qual era a outra alternativa?
FOLHA - Havia a expropriação.
DILMA - Disso eu nunca quis
ser. Nós não achávamos isso
grande coisa. A partir de um determinado momento houve
uma visão crítica disso, do que a
gente chamava militarismo. É
muito difícil falar isso porque
as pessoas ficam achando que a
gente está limpando a barra.
Não me interessa ficar falando
nisso, é da época e deu. Eu sei
que havia uma tensão eterna.
Nunca concordávamos uns
com os outros porque pensávamos diferente. Bota todo mundo junto, você imagina. Não
posso dizer o que aconteceu
dentro da direção.
FOLHA - No Rio, a sra. acompanhou
a fusão e acompanhou o racha [da
VAR] em Teresópolis.
DILMA - Na minha cabeça, eu só
lembro que a gente conversava
e discutia muito, debatia. Tinha
uma infraestrutura complexa
porque a gente não saía de lá,
não podia aparecer. Bom não
era. Mas, naquela época, você
achava que estava fazendo tudo
pelo bem da humanidade. Nunca se esqueça que a gente achava que estava salvando o mundo de um jeito que só acha aos
19, 20 anos. Sem nenhum ceticismo, com uma grande generosidade. Tudo fica mais fácil.
Tudo fica mais justificado, todas as dificuldades. Você não
ter roupa não tem problema. Às
vezes, andava com uma calça
xadrez e uma blusa xadrez.
FOLHA - A sra. faz algum mea-culpa pela opção pela guerrilha?
DILMA - Não. Por quê? Isso não
é ato de confissão, não é religioso. Eu mudei. Não tenho a mesma cabeça que tinha. Seria estranho que tivesse a mesma cabeça. Seria até caso patológico.
As pessoas mudam na vida, todos nós. Não mudei de lado
não, isso é um orgulho. Mudei
de métodos, de visão. Inclusive,
por causa daquilo, eu entendi
muito mais coisas.
FOLHA - Como o quê?
DILMA - O valor da democracia,
por exemplo. Por causa daquilo, eu entendi os processos absolutamente perversos. A tortura é um ato perverso. Tem
um componente da tortura que
é o que fizeram com aqueles
meninos, os arrependidos, que
iam para a televisão. Além da
tortura, você tira a honra da
pessoa. Acho que fizeram muito isso no Brasil. Por isso, minha filha, esse seu jornal não
pode chamar a ditadura de ditabranda, viu? Não pode, não.
Você não sabe o que é a quantidade de secreção que sai de um
ser humano quando ele apanha
e é torturado. Porque essa
quantidade de líquidos que nós
temos, o sangue, a urina e as fezes aparecem na sua forma
mais humana. Não dá para chamar isso de ditabranda, não.
FOLHA - Quando a sra. foi presa, foram apreendidos documentos falsos, desenho da VAR e um bilhete de
amor com as iniciais TG. Era do Cláudio Galeno Linhares?
DILMA - Não, era do Carlos
Araújo. Era apelido dele. Se você quiser me mandar, eu agradeço. Onde que está isso, hein?
FOLHA - No inquérito arquivado no
STM. O bilhete está assim: "Nêga
querida, infelizmente não poderei
estar aí [no Natal]. Verás na prática,
prometo-te..."
DILMA - Essa quantidade de te,
você acha que é de mineiro, pô?
Isso é de gaúcho. Tudo no te...
Não falei do Carlos no depoimento. Eles acreditavam que
era o Galeno. Carlos era da direção, eu não podia abrir a boca. Depois eles descobriram.
FOLHA - Como foi, durante os dias
de Oban, para conseguir proteger a
direção? Pelo que vi, alguns nomes
não foi possível proteger como Maria Joana Telles, Ruaro, Vicente...
DILMA - Eles sabiam deles porque tinha caído outra pessoa
que era da direção. Foi por isso
que caí. Eu caí porque caiu outra pessoa.
FOLHA - Era com quem a sra. teria
um encontro. O José Olavo?
DILMA - Essas coisas eu não
quero falar, minha filha. Não
quero dar responsabilidade para ninguém. Estou muito velha
para fazer isso.
FOLHA - No depoimento da Justiça,
a sra. cita os quatro como tendo caído em consequência direta de sua
queda. A sra. dá os quatro nomes?
DILMA - É. Caíram, ponto.
FOLHA - Eu conversei com o hoje
coronel, antigo capitão Maurício...
DILMA - Ele existe ainda? Ele já
não batia bem da bola. Ele continua sem bater?
FOLHA - Eu perguntei se ele votaria
na sra. para presidente. Primeiro,
disse não. Depois, pediu para retificar dizendo que "depende com
quem vai concorrer".
DILMA - Minha querida, pelo
amor de Deus. A vida é um pouquinho mais complicada que isso. Mas respeito o que ele falou.
FOLHA - Ele participava das sessões
[de tortura]?
DILMA - Ele era da equipe de
busca, nunca participou. Mérito dele. Pelo menos enquanto
estive na Oban. Não posso dizer
depois. Você tinha aquele negócio de dar ponto para parar de
apanhar, e ele levava as pessoas. Ele fez a busca em toda a
minha casa. Pegava minhas coisas e perguntava sobre elas.
FOLHA - No depoimento à Justiça,
a sra. cita ele como responsável pelas sessões de torturas.
DILMA - Que ele torturava pessoalmente, nunca vi. A mim
não foi. Que ele entrava na sala
e via tortura, tenho certeza.
Qualquer um entrava. Te torturavam com a porta aberta.
FOLHA - Li uma entrevista em que
a sra. diz que fez treinamento no exterior, mas não consegui encontrar
o período em que isso pode ter acontecido. Deu tempo de sair do Brasil
para treinar?
DILMA - Acho engraçadíssimo
porque quando me perguntaram isso, eu neguei que tivesse
feito. É que nem aquela lista
que sai aí dizendo que eu fiz dez
assaltos armados. Nunca fiz
uma ação armada. Se tivesse
feito, eu estaria condenada por
isso. É a mesma coisa essa história do treinamento. Nunca fiz
nem treinamento no exterior
nem ação armada. É só perguntar para as pessoas.
FOLHA - Incomoda a sra. atribuírem essas ações a seu nome?
DILMA - É chato. Não sou supermulher para dizer que não
me incomoda. Agora não perco
a cabeça por isso. Estão mentindo, têm segunda intenção.
FOLHA - Não teve treinamento no
exterior, mas o básico todo mundo
sabia como montar e desmontar
uma arma. Era questão de segurança do dia a dia?
DILMA - Sempre fui muito dedicada, mas não achava isso
grande coisa. Nunca fiquei avaliando se devia fazer isso ou
aquilo. Não se colocava assim
para nós. Falavam assim: "Vai
ali e aprende a montar e desmontar a arma". Você ia e
aprendia. "Vai ali e escreve um
documento." Você também ia.
FOLHA - Como era o dia a dia da prisão? Algumas companheiras de cela
dizem que a sra. dava aula de macroeconomia, mas não gostava muito dos trabalhos manuais de tricô e
crochê...
DILMA - Aprendi bem. Sei fazer
tricô e crochê. Você sabe que faço tapete? Mas não aprendi tapete lá, não. Fazia muito bem
crochê. Podem falar que eu não
fazia... (risos) No fim, gostava
de fazer crochê. A gente lia
muito, escutava muita música,
conversava muito, jogava vôlei.
[As aulas] estão fantasiando...
FOLHA - A sra. tinha consciência
que continuava na mira da polícia
mesmo depois da prisão?
DILMA - Tinha. Não podia fazer
aniversário que ficavam pendurados nas árvores, olhando.
FOLHA - Quando tem o racha,
quem assume a VAR?
DILMA - Não me lembro. Se o
Espinosa tá dizendo que eu estava... Não sei se fui, se não fui
[do comando]. É um período
muito pequeno até a queda. Fui
uma das primeiras a cair. Eu
lembro que eu fui em outubro
para São Paulo e nunca mais
voltei [ao Rio]. Fiquei lá junto
com todo mundo que dirigia a
VAR na época. Só me lembro do
José Olavo e de mais um. Tinha
mais. Tinha quatro.
FOLHA - Muita gente dizia que a
sra. era a responsável pelo dinheiro
da organização. A sra. era o caixa de
São Paulo, para manter militantes,
aparelhos?
DILMA - Também não me lembro disso, não, que eu era do dinheiro. Se eu fosse do dinheiro,
eles tinham me matado a pau.
Tudo o que eles queriam era o
dinheiro. Não lembro isso, não.
Não me lembro de ter caído
com um tostão. Se eu tivesse dinheiro, ia ser um festival.
FOLHA - O delegado ficou bem impressionado com a sra. depois do interrogatório. A ponto de defini-la
como uma pessoa com dotação intelectual apreciável.
DILMA - Interessante... Da onde
ele tirou isso, né? Nem me lembro dele. A gente não dava importância para o delegado do
Dops, só para a Oban. Deve ter
vindo da Oban. Tinha um juiz
auditor louco (risos). Ele fez
uma denúncia dizendo que eu
era a Joana d'Arc do terror. Era
ridículo. Ele era dado a essas...
FOLHA - É muito divertido o perfil
que o delegado traça.
DILMA - Essa parte não era pública, essa parte do delegado.
Você conseguiu um documento
único. A Oban classificava a
gente pelo nível de perigo. O
major Linguinha [Waldir Coelho] só interrogava quem ele
achava que era direção. Ele falava comigo sempre.
FOLHA - A sra. não pegou o delegado Sérgio Fleury no Dops?
DILMA - Quando entrei no
Dops, o Fleury estava em viagem. Passei quase um mês na
Oban e um mês no Dops. Eu
custei a ir embora da Oban.
Achava estranho eu não ir embora. Todo mundo ia, e eu ficava. Eu não lembro a data. Vai ficando muito obscuro, como foi
e como é que não foi.
FOLHA - Vocês passavam por um
treinamento intensivo para deletar
as coisas. Tinha que esquecer para
não contar?
DILMA - Uma parte você tentava esquecer. Sabe que teve uma
época em que eu falei uma coisa
que eu achava que era verdade
e não era. Era mentira que eu
tinha contado e aí depois eu
descobri que era mentira. Você
conta e se convence.
FOLHA - Informação obtida sob
tortura é de responsabilidade de
quem tortura e não de quem fala?
Dá para culpar a pessoa que falou?
DILMA - Não dá mesmo. Até
porque ali, naquela hora, tinha
uma coisa muito engraçada que
eu vi. Aconteceu com muita
gente, não foi só comigo. É por
isso que aquela pergunta é absurda, a do senador [Agripino
Maia, do DEM]. A mentira é
uma imensa vitória e a verdade
é a derrota. Na chegada do presídio [Tiradentes], estava escrito "Feliz do povo que não tem
heróis", que era uma frase do
Brecht que tem um sentido amplo. Esse fato de não precisar de
heróis mostra uma grande civilidade. É preciso que cada um
tenha um pouco de heroísmo.
FOLHA - Quando a sra. chegou à
Oban, houve muitos gritos?
DILMA - Teve. Fazia parte do
script. É uma luta eterna entre
a sua autodestruição e sua luta
para ficar inteiro psicologicamente. A palavra correta é uma
disputa moral no sentido amplo da palavra moral. É uma
disputa entre éticas diferentes,
entre princípios diferentes.
Uma pessoa que se dispõe a fazer a outra ter dor tem um processo de difícil identificação.
Fico imaginando o que foi Abu
Ghraib, porque bota de um lado
americanos e de outro lado um
outro mundo. Você tem de ser
desqualificado como ser humano para ser torturado, santa, senão você não é.
FOLHA - E a família da sra., como
reagiu a isso tudo?
DILMA - Minha mãe foi absolutamente fantástica. Eles tinham horror de mãe.
FOLHA - Só para deixar claro, a sra.
não se recorda desse plano para sequestrar o Delfim?
DILMA - Não. Acho que o Espinosa fantasiou essa. Sei lá o que
ele fez, eu não me lembro disso.
E acho que não compadece
com a época, entendeu? Nós
acabamos de rachar com um
grupo, houve um racha contra a
ação armada e vai sequestrar o
Delfim? Tem dó de mim. Alguém da VAR que você entrevistou lembrava-se disso? Isso
é por conta do Espinosa, santa.
Ao meu conhecimento jamais
chegou. Não me lembro disso,
minha filha. E duvido que alguém lembre. Não acredito que
tenha existido isso, dessa forma. Isso está no grande grupo
de ações que me atribuem. Antes era o negócio do cofre do
Adhemar, agora vem o Delfim.
Ah, tem dó. Todos os dias arranjam uma ação para mim.
Agora é o sequestro do Delfim?
Ele vai morrer de rir.
FOLHA - De qualquer forma, obrigada por tocar nesse assunto delicado...
DILMA - Eu estou te fazendo
uma negativa peremptória. Para mim, não disseram. Tá?
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