São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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NO PLANALTO

Brasília se mexe para livrar "filantropia" das aspas

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Existe a filantropia e existe a "filantropia". Existe o humanitarismo genuíno e existe tudo o que está implícito quando se diz "filantropia". Nos últimos quatro meses, para os escassos leitores que frequentaram este canto de página, o conceito de "filantropia" foi ficando menos vago.
É a caridade aética, é a promiscuidade administrativa, é o BMW beneficente, é o jatinho caritativo, é a perversão religiosa, é a isenção tributária sem olhos para a ralé, é a desatenção social do tucanato, é...
Arrancadas da zona de sombra, algumas espertezas mobilizaram o Ministério Público. Abriram-se inquéritos. Alguns já produziram resultados. Outros ainda produzirão.
Devagarinho, Brasília vai abandonando a letargia. Aqui e ali, tomam-se providências para tentar livrar a filantropia das aspas que a conspurcam. É de justiça reconhecer o esforço. Embora incipiente, já se faz digno de nota.
Como se sabe, compete ao CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social) a emissão dos certificados filantrópicos que mantêm entidades pseudobeneficentes no mundo encantado da isenção tributária. Em meio à improvisação que caracteriza a análise de processos, o presidente do conselho, Antônio Brito, instituiu um "manual de procedimentos".
Antes do manual, os pedidos de emissão e renovação de certificados seguiam trilha caótica. Muitos eram homologados sem que ao menos os conselheiros (nove do governo e nove de entidades civis) corressem os olhos pelas páginas dos respectivos processos.
Depois do manual, tenta-se inaugurar nova fase. Os conselheiros são agora obrigados a relatar lotes de processos, que lhes chegam às mãos por sorteio. Não se está diante de antídoto infalível contra a fraude. Mas será mais fácil vislumbrar rostos e digitais por trás de eventuais desvios.
Alçado ao cargo de ministro da Previdência em 3 de abril, o técnico José Cechin apressou-se em arrostar o problema. Criou um grupo de correição no CNAS. Vasculham-se processos antigos à cata de deslizes.
Sob a coordenação de Mário Germano Borges Filho, procurador de carreira da Previdência, o grupo criado por Cechin vira do avesso, entre outros, os casos da chamada resolução 115, aqui revelados.
Publicada no "Diário Oficial" de 13 de maio de 99, a resolução 115 indeferiu por atacado os certificados filantrópicos de 55 entidades. Elas recorreram. Escalados para analisar os recursos, três fiscais do INSS recomendaram a cassação dos certificados de mais de 40 entidades.
Súbito, os relatórios dos fiscais evaporaram. Foram substituídos por análises que propugnavam o oposto. Nada menos que 47 das 55 entidades listadas na resolução 115 obtiveram a renovação de seus certificados.
A lista de afortunados inclui de pigmeus filantrópicos como a Sociedade Cultural e Social Anjos Custódios, de Marialva (PR), a gigantes da benemerência do porte da PUC-SP. O grupo de correição já descobriu o seguinte:
1) a maioria (40%) da lista assentada na resolução 115 é de entidades católicas;
2) a revisão do indeferimento dos certificados filantrópicos não passou pela junta de reconsideração do CNAS, um imperativo legal;
3) compõem a junta de reconsideração o secretário-executivo do conselho, o coordenador de normas e o chefe do serviço de análise. Mas os documentos levados aos processos trazem apenas a assinatura da então coordenadora de normas, Luiza Nogueira. Contém, de resto, a rubrica de pessoa estranha à estrutura da junta. Chama-se Maria Tereza Diniz. É freira. Representava no CNAS, até o mês passado, a CNBB.
O grupo de correição se reúne nesta segunda-feira, para decidir o que fazer. Deve propor ao ministro Cechin que todos os processos da resolução 115 sejam retirados do armário. Serão submetidos a severo reexame.
Farão por opção algo que, cedo ou tarde, seria feito por pressão. O caso é investigado também pelo procurador Jefferson Aparecido Dias, de Marília. Ele age em combinação com o Ministério Público de Brasília. Recolheu evidências que não cheiram bem.
De resto, casos levados à Justiça vêm merecendo pronta resposta do CNAS. Por exemplo: o hospital Sírio Libanês, que dá de ombros para o SUS, amargou a cassação de seu certificado filantrópico no último dia 19 de março. Obteve-o de volta por força de mandado de segurança, obtido na 6ª Vara Federal de Brasília. Acionada, a Advocacia Geral da União recorreu ao Tribunal Regional Federal. Aguarda-se o julgamento.
O CNAS atravessa quadra propícia à restauração de métodos. Renovada no mês passado, a representação da sociedade civil ganha sangue novo. A invasão dos porões da "filantropia" por repentinos e insistentes fachos de luz parece ter abatido o entusiasmo social de alguns conselheiros.
A freira Maria Tereza Diniz, por exemplo, deixou o CNAS. A CNBB a substituiu por Maria Cecília Ziliotto. Pretextando razões de saúde, Dora Sílvia da Cunha Bueno também deixou o conselho. Era titular de vaga destinada à Federação Brasileira das Associações Cristãs de Moços. Entra em seu lugar Leopoldo Moacir Lima.
Personagem assídua deste canto de página, Dora era veterana da filantropia. Frequentava o CNAS havia uma década. Ora como titular, ora como suplente. Embora tivesse a prerrogativa de requisitar diligências ao INSS, gostava de visitar pessoalmente entidades sobre as quais emitia pareceres, em geral favoráveis.
Dora é irmã do deputado Cunha Bueno (PPB-SP). Mora em São Paulo. Possui escritório de consultoria. Assessora sobretudo empresas educacionais. São de sua lavra certos pareceres, digamos, inusitados.
Que o ar fresco introduzido no CNAS seja convertido em ventania. Que evolua para um vendaval. Que dê origem a um furacão. Forte o bastante para engolfar a inércia.



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