São Paulo, quinta-feira, 05 de maio de 2005

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ANÁLISE

As disputas no peronismo e as relações Argentina - Brasil

LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tensões deflagradas pelas queixas da Argentina contra o Brasil não decorreram de diferenças na política exterior dos dois países. Elas têm origem, principalmente, na política doméstica do Partido Justicialista, cujo controle e liderança o presidente Néstor Kirchner está a disputar com o ex-presidente Eduardo Duhalde.
Esse fator transpareceu nitidamente na crítica do chanceler Rafael Bielsa à Comunidade Sul-Americana de Nações. A prioridade, disse ele, é o Mercosul e não se pode pretender "saltar 2,10 m quando não se chegou a saltar 1,40 m". E acrescentou: "Temos um déficit institucional no Mercosul que nos parece que está como prioridade para se solucionar antes de dar instituições à Comunidade Sul-Americana".
Há um déficit institucional no Mercosul, mas a tarefa de solucioná-lo não impede que o Mercosul se torne o núcleo fundamental de uma Comunidade Sul-Americana de Nações. A idéia de constituir essa união estava em gestação desde o governo do presidente Itamar Franco (1992-1995).
Àquele tempo, começaram-se a costurar com os demais países da América do Sul acordos comerciais, para formar a Área de Livre Comércio da América do Sul (ALCSA). Embora depois não se falasse mais no nome, o governo de Fernando Henrique Cardoso deu continuidade às negociações e culminou por convocar reunião dos presidentes da América do Sul, em Brasília, em 2000. O Brasil tem uma política exterior que evolui, se transforma, porém mantém sua continuidade.
O embaixador Celso Amorim, ao voltar à função de chanceler, em 2003, enfatizou o projeto da união sul-americana, a fim de dar um caráter político ao Mercosul (Mercado Comum do Sul) -nome que refletiu o espírito meramente comercial e livre-cambista, predominante no tempo dos governos de Fernando Collor de Melo e Carlos Menem- e aumentar seu poder de barganha nas negociações internacionais.
A idéia de formar a Comunidade Sul-Americana de Nações, que se formalizou na cúpula presidencial de Cusco (2004), foi, porém, lançada publicamente por Eduardo Duhalde, como presidente do Conselho de Representantes Permanentes junto ao Mercosul, cargo para o qual fora escolhido por indicação de Kirchner, que tentara, assim, afastá-lo da política interna da Argentina.
Essa manobra falhou. Duhalde continua envolvido na política interna e Kirchner imagina que ele se converteu em "útil instrumento do Itamaraty" contra as posições da chancelaria argentina. Essa suspeita não tem fundamento, como não têm as alegações explicitadas para justificar a atitude da Argentina.
O chanceler Bielsa criticou o fato de o Brasil ter lançado a candidatura do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa à direção da OMC, contra o candidato do Uruguai, o embaixador Carlos Pérez del Castillo, com o qual a Argentina se comprometera.
Acontece que o ex-presidente do Uruguai, Jorge Battle, que sempre fez o jogo dos Estados Unidos contra o Mercosul, lançara a candidatura de Carlos Pérez del Castillo sem consultar o Brasil. A Argentina comprometera-se a apoiá-lo, igualmente sem ouvir e acertar com o Brasil.
O governo do presidente Tabaré Vásquez, por motivos de política interna, não podia retirar a candidatura de Pérez del Castillo, mas o Brasil, não consultado por nenhum dos dois países, não se sentiu obrigado a apoiá-la e lançou o nome de Seixas Corrêa.
Outra crítica foi a suposta falta de apoio do Brasil à Argentina no FMI. O chanceler Bielsa não se lembra que o Brasil, no governo FHC, manifestou-se em favor da Argentina, quando ocorreu o default, ao contrário dos EUA, que a repudiaram, apesar das "relações carnais", por ela ter enviado navios para a Guerra do Golfo e por tornar-se sócia da Otan.
No entanto, embora queira o apoio no FMI e um tratamento diferenciado no Mercosul, a Argentina opõe-se a que o Brasil obtenha assento como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, quando não há chance de que ela possa vir a ocupá-lo, mesmo se instituída a rotatividade (hipótese muito remota).
Como disse o professor argentino Aníbal Jozami, reitor da Universidade 13 de Fevereiro, a Argentina não pode jogar politicamente o protagonismo com o Brasil, que tem peso econômico e político que ela não possui. É preciso ser realista. A Argentina é país importante na América do Sul, um grande país, com povo culto e empreendedor. Não obstante, já não é mais potência regional.
E não foi o Brasil responsável por seu declínio. Ele ocorreu devido a vários fatores, entre os quais, à política de seus governantes, das ditaduras militares até Carlos Menem, que destruíram sua indústria, com a teoria das "vantagens comparativas", "relações carnais", "realismo periférico", procurando reconstituir com os EUA o tipo de relações que a Argentina tivera com a Grã-Bretanha, espécie de quinto dominium.
A Argentina, desde a década de 90, teve constantemente saldos positivos no seu comércio com o Brasil. Só em 2003, sofreu um pequeno déficit de US$ 36 milhões e, em 2004, de US$ 1,1 bilhão. Nenhum país pode ter sempre superávit no comércio com outro. Assim é a balança comercial.
Entretanto, a Argentina cria atritos com o Brasil, seu melhor parceiro comercial e aliado estratégico, atritos que são explorados, através de intrigas, pelos que querem dividir e debilitar o Mercosul ao gerar intermitentes tensões nas suas relações bilaterais, projeta não só na União Européia mas também nos EUA, a imagem de um país diplomaticamente imaturo, sem política exterior coerente e conseqüente, uma vez que sua orientação sempre oscila conforme os "humores bons ou maus do governo", como bem observa o jornalista Oscar Raúl Cardoso.


Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político, professor emérito da Universidade de Brasília e autor de "Brasil, Argentina e Estados Unidos", entre outros

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