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ANÁLISE
As disputas no peronismo e as relações Argentina - Brasil
LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A tensões deflagradas pelas
queixas da Argentina contra o
Brasil não decorreram de diferenças na política exterior dos dois
países. Elas têm origem, principalmente, na política doméstica
do Partido Justicialista, cujo controle e liderança o presidente Néstor Kirchner está a disputar com o
ex-presidente Eduardo Duhalde.
Esse fator transpareceu nitidamente na crítica do chanceler Rafael Bielsa à Comunidade Sul-Americana de Nações. A prioridade, disse ele, é o Mercosul e não
se pode pretender "saltar 2,10 m
quando não se chegou a saltar
1,40 m". E acrescentou: "Temos
um déficit institucional no Mercosul que nos parece que está como prioridade para se solucionar
antes de dar instituições à Comunidade Sul-Americana".
Há um déficit institucional no
Mercosul, mas a tarefa de solucioná-lo não impede que o Mercosul
se torne o núcleo fundamental de
uma Comunidade Sul-Americana de Nações. A idéia de constituir essa união estava em gestação desde o governo do presidente
Itamar Franco (1992-1995).
Àquele tempo, começaram-se a
costurar com os demais países da
América do Sul acordos comerciais, para formar a Área de Livre
Comércio da América do Sul
(ALCSA). Embora depois não se
falasse mais no nome, o governo
de Fernando Henrique Cardoso
deu continuidade às negociações
e culminou por convocar reunião
dos presidentes da América do
Sul, em Brasília, em 2000. O Brasil tem uma política exterior que
evolui, se transforma, porém
mantém sua continuidade.
O embaixador Celso Amorim,
ao voltar à função de chanceler,
em 2003, enfatizou o projeto da
união sul-americana, a fim de
dar um caráter político ao Mercosul (Mercado Comum do Sul)
-nome que refletiu o espírito
meramente comercial e livre-cambista, predominante no tempo dos governos de Fernando Collor de Melo e Carlos Menem- e
aumentar seu poder de barganha
nas negociações internacionais.
A idéia de formar a Comunidade Sul-Americana de Nações, que
se formalizou na cúpula presidencial de Cusco (2004), foi, porém,
lançada publicamente por
Eduardo Duhalde, como presidente do Conselho de Representantes Permanentes junto ao
Mercosul, cargo para o qual fora
escolhido por indicação de Kirchner, que tentara, assim, afastá-lo
da política interna da Argentina.
Essa manobra falhou. Duhalde
continua envolvido na política
interna e Kirchner imagina que
ele se converteu em "útil instrumento do Itamaraty" contra as
posições da chancelaria argentina. Essa suspeita não tem fundamento, como não têm as alegações explicitadas para justificar a
atitude da Argentina.
O chanceler Bielsa criticou o fato de o Brasil ter lançado a candidatura do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa à direção da
OMC, contra o candidato do Uruguai, o embaixador Carlos Pérez
del Castillo, com o qual a Argentina se comprometera.
Acontece que o ex-presidente do
Uruguai, Jorge Battle, que sempre
fez o jogo dos Estados Unidos contra o Mercosul, lançara a candidatura de Carlos Pérez del Castillo sem consultar o Brasil. A Argentina comprometera-se a
apoiá-lo, igualmente sem ouvir e
acertar com o Brasil.
O governo do presidente Tabaré
Vásquez, por motivos de política
interna, não podia retirar a candidatura de Pérez del Castillo,
mas o Brasil, não consultado por
nenhum dos dois países, não se
sentiu obrigado a apoiá-la e lançou o nome de Seixas Corrêa.
Outra crítica foi a suposta falta
de apoio do Brasil à Argentina no
FMI. O chanceler Bielsa não se
lembra que o Brasil, no governo
FHC, manifestou-se em favor da
Argentina, quando ocorreu o default, ao contrário dos EUA, que a
repudiaram, apesar das "relações
carnais", por ela ter enviado navios para a Guerra do Golfo e por
tornar-se sócia da Otan.
No entanto, embora queira o
apoio no FMI e um tratamento
diferenciado no Mercosul, a Argentina opõe-se a que o Brasil obtenha assento como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, quando não há
chance de que ela possa vir a ocupá-lo, mesmo se instituída a rotatividade (hipótese muito remota).
Como disse o professor argentino Aníbal Jozami, reitor da Universidade 13 de Fevereiro, a Argentina não pode jogar politicamente o protagonismo com o Brasil, que tem peso econômico e político que ela não possui. É preciso
ser realista. A Argentina é país
importante na América do Sul,
um grande país, com povo culto e
empreendedor. Não obstante, já
não é mais potência regional.
E não foi o Brasil responsável
por seu declínio. Ele ocorreu devido a vários fatores, entre os quais,
à política de seus governantes,
das ditaduras militares até Carlos
Menem, que destruíram sua indústria, com a teoria das "vantagens comparativas", "relações
carnais", "realismo periférico",
procurando reconstituir com os
EUA o tipo de relações que a Argentina tivera com a Grã-Bretanha, espécie de quinto dominium.
A Argentina, desde a década de
90, teve constantemente saldos
positivos no seu comércio com o
Brasil. Só em 2003, sofreu um pequeno déficit de US$ 36 milhões e,
em 2004, de US$ 1,1 bilhão. Nenhum país pode ter sempre superávit no comércio com outro. Assim é a balança comercial.
Entretanto, a Argentina cria
atritos com o Brasil, seu melhor
parceiro comercial e aliado estratégico, atritos que são explorados,
através de intrigas, pelos que querem dividir e debilitar o Mercosul
ao gerar intermitentes tensões
nas suas relações bilaterais, projeta não só na União Européia mas
também nos EUA, a imagem de
um país diplomaticamente imaturo, sem política exterior coerente e conseqüente, uma vez que sua
orientação sempre oscila conforme os "humores bons ou maus do
governo", como bem observa o
jornalista Oscar Raúl Cardoso.
Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político, professor emérito da Universidade de Brasília e autor de "Brasil, Argentina e Estados Unidos", entre outros
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