São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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NO PLANALTO

Palocci ignora desvio 14 vezes maior que o dos Correios

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

A oposição diz que falta articulação política ao governo. Maledicência. Os articuladores abundam ao redor de Lula. Pode faltar miolo, mas cabeças há de sobra. Eram duas: Aldo Rebelo e José Dirceu. Surgiu uma terceira: "Tenho sido colaborador em tempo integral", confessou Antonio Palocci.
Os três vivem brigando, contra-atacam os inimigos. Tolice. A verdade é que eles mal se falam. O que os une é a afinidade ideológica. Têm raízes políticas no marxismo. Divergiram no passado. Rebelo era maoísta; Dirceu, stalinista; Palocci, trotskista. Reencontraram-se, porém, sob os escombros das ideologias. Trocaram a cartilha do velho Karl pela doutrina dos irmãos Marx. Tornaram-se "grouchomarxistas".
Daí a atmosfera de comédia "nonsense" que vigora em Brasília. Em co-produção com o PC do B de Aldo, o ex-PT de Dirceu e Palocci produz, no escurinho dos estúdios do Planalto, gags que demolem a lógica. Os articuladores inspiram-se numa das frases geniais do cômico Groucho Marx: "Sou um homem de princípios. Se eles não o agradarem, tenho outros".
Um detalhe diferencia o roteiro encenado pelo petismo dos enredos protagonizados pelos irmãos Groucho, Chico e Harpo. Na peça brasiliense o papel de palhaço é reservado aos expectadores. Isso fica especialmente claro no esquete estrelado por Palocci.
Dedicando-se "em tempo integral" à sensibilização monetária dos deputados que enterrarão a CPI dos Correios, o chefão da Fazenda ignora afazeres de sua pasta. Negligencia, por exemplo, o combate à sonegação de impostos. O repórter está rouco de tanto escrever contra os embustes escondidos atrás dos parcelamentos tributários feitos com base no Refis e no Paes.
O Refis, o leitor bem sabe, é aquela mamata fiscal criada sob FHC. O Paes, ou Refis 2, é a reedição do logro, sob Lula. Criados a pretexto de oferecer oxigênio a empresas penduradas no fisco, os programas lesam o erário em bilhões de reais. Os sucessivos casos saltam dos computadores da Fazenda como grãos de pipoca em gordura quente.
O escândalo dos Correios nasceu de uma suspeita de fraude em licitação orçada em R$ 60 milhões. As fraudes do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil) envolvem suposta mesada mensal de R$ 400 mil para o petebê. Abaixo se relatará um caso de sonegação fiscal de R$ 850 milhões. Corresponde a 14 vezes a concorrência micada dos Correios. Daria para bancar a gratificação do IRB ao partido de Roberto Jefferson por 177 anos.
Deu-se o seguinte:
1) a empresa Milano Distribuidora de Veículos, sediada em São Paulo, responde a 40 processos de execução fiscal. Nasceram de autuações lavradas pela Receita e pelo INSS. Referem-se a dívidas que, inscritas em dívida ativa, são consideradas "líquidas e certas";
2) 6 das 40 ações correm na 5ª Vara de Execuções Fiscais de São Paulo. É comandada pelo juiz Celso Bedin, que vem se notabilizando por tratar sonegadores a pão, água e lei;
3) numa das ações submetidas ao crivo do juiz Bedin, a empresa levou aos autos uma "falsa guia" de recolhimento de débitos previdenciários. Outros quatro processos, distribuídos à 1ª Vara de Execuções, "desapareceram misteriosamente";
4) por ordem de Bedin, o oficial de Justiça José Elias dos Santos compareceu à sede da Milano, para penhorar-lhe os bens. Em relatório datado de 16 de agosto de 2000, Santos informou ao juiz: "Deixei de proceder a penhora, em virtude de não haver conseguido encontrar bens suficientes para a garantia da dívida";
5) instada a indicar bens penhoráveis, a Procuradoria da Fazenda Nacional, órgão subordinado ao "articulador" Palocci, endereçou ao juiz Bedin, em 10 de outubro de 2003, ofício pedindo a "suspensão" das cobranças. Assina-o a procuradora fazendária Maria Salete de Oliveira Sucena. Alegou que a Milano aderira ao Paes em 30 de maio de 2003;
6) o juiz Bedin determinou a apresentação, em dez dias, de documentos que comprovassem a adesão ao programa de parcelamento tributário. Cobrou também cópias das guias de "recolhimentos até então efetuados" pela Milano;
7) em vez de exibir os comprovantes, a Procuradoria da Fazenda Nacional enviou ao juiz, em 24 de setembro de 2004, um segundo pedido de "suspensão" dos processos de cobrança. A nova petição foi assinada pela procuradora fazendária Rosa Maria M. de A. Cavalcanti;
8) intrigado, o juiz Bedin foi à internet. Pesquisando no sítio do Ministério da Fazenda, descobriu que a Milano, de fato, aderira ao Paes. Confessara uma dívida tributária de R$ 850 milhões. Porém a firma pagara apenas quatro parcelas do financiamento. O último pagamento ocorrera em em 31 de outubro de 2003. Ou seja, a Milano tornara-se inadimplente um anos antes da segunda petição em que a Fazenda pede a interrupção das cobranças;
9) habituado a lidar com execuções de dívidas fiscais, Bedin anotou, em despacho de 13 de abril de 2005, que a "criminosa omissão" da Procuradoria da Fazenda, por "rotineira", não lhe causou "nenhum espanto";
10) no mesmo despacho, o juiz realçou um detalhe inusitado. Manda a lei que os parcelamentos do Paes sejam feitos em, no máximo, 15 anos. "Uma boa calculadora", escreveu Bedin, "informa que o resultado da divisão de R$ 850 milhões por 180 meses é R$ 4,7 milhões". As quatro parcelas efetivamente pagas pela Milano estampavam valor extraordinariamente menor: R$ 50 mil. Os contribuintes "honestos", em dia com o fisco, "ficam com cara de trouxas", assinalou o juiz, antes de enviar cópia do processo ao Ministério Público;
11) o repórter tentou ouvir a Milano. O telefone da empresa, porém, não consta da lista. No serviço de auxílio da Cia. Telefônica, informou-se que a firma não autoriza o fornecimento do número. Contatado, o escritório da Procuradoria da Fazenda Nacional em São Paulo não quis se manifestar.
Como se vê, submetida à doutrina "grouchomarxista", a República do petismo não é propriamente engraçada. É, antes, desgraçadamente tragicômica.

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