São Paulo, quinta-feira, 05 de setembro de 2002

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OLHAR ESTRANGEIRO

A "brasilização" da Argentina

LUIS ESNAL

"O que eu conquistei/ não vou jogar pra cima/ com todo o respeito/eu não vou ser outra Argentina." O jingle de campanha de José Serra, abortado antes de provocar um conflito diplomático, é, sem dúvida, um caso curioso de marketing político. O candidato de um governo que tem relações fluentes com um outro país que considera sócio estratégico diz que não quer ser como o seu sócio estratégico. E o diz com musiquinha e passos de dança.
A utilização que quase todos os candidatos desta campanha estão fazendo da crise argentina seria apenas um lance de marketing de gosto duvidoso, não fosse pelo fato de também esconder um discurso contraditório e falso.
Alguns meses atrás, Serra dizia em propaganda que, "para continuar com o rumo, muitas vezes o governo [brasileiro] teve que tomar medidas que os governos argentinos não quiseram tomar". Serra falava da "oportuna" desvalorização do real, em contraposição à demora em desvalorizar a moeda na Argentina. Mas, tanto na Argentina de 2001 como no caótico janeiro de 1999 no Brasil, não foi o próprio mercado quem atropelou os governos, desvalorizando o real e o peso na marra?
Lula também criticou a condução da economia argentina. O problema, definiu, é que Fernando de la Rúa "se subordinou às diretrizes do FMI". Não foram essas diretrizes que Lula aceitou há duas semanas para receber o dinheiro do Fundo, caso seja eleito?
Ciro Gomes também incorporou o papel de rebelde em território alheio. Disse que a Argentina "foi induzida e coagida a cumprir todo o receituário neoliberal do Consenso de Washington". Mas não é esse o receituário que seu novo guru econômico, o "Chicago boy" José Alexandre Scheinkman, sempre assinou embaixo?
Soa tragicamente engraçado escutar candidatos dizendo que "o Brasil pode virar uma Argentina". O que acontece é o contrário: é a Argentina que se transforma em Brasil. Era a Argentina o país que tinha classe média expressiva e que a está perdendo. Se a crise não regredir, talvez a Argentina vire um Brasil por completo em alguns anos, com desigualdade de renda comparável à brasileira. Por ora, no pior dos infernos, a Argentina está longe desse índice.
Anos atrás, quem ia para as Províncias do norte, como Salta ou Jujuy, encontrava tradição na área rural e um povo urbano que, embora dependente do Estado, vivia com dignidade. Agora, onde havia classe média, há pobreza e desemprego; onde havia sobrevivência, há miséria absoluta. Como em boa parte do interior brasileiro e na periferia de São Paulo.
A brutalidade da crise argentina pode se explicar pelo impacto social. A Argentina levou só quatro anos de recessão para virar o que Brasil foi por 500 anos. Conseguiu-o em agosto: com 5 milhões de novos pobres, o número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza chegou a 19 milhões e agora tem uma proporção que não destoa dos 53 milhões de brasileiros na mesma situação.
Mas o quadro ainda é diferente, por exemplo, no quesito segurança. Enquanto na grande Buenos Aires houve 200 sequestros relâmpagos no primeiro semestre, na Grande São Paulo acontecem entre 6.000 e 8.000 por ano.
Em resposta aos candidatos brasileiros, que parecem esquecer os números em suas afirmações, os candidatos argentinos às eleições de 2003 poderiam levantar a mesma consigna: "Para que a Argentina não acabe virando o Brasil, vote...". Seria a chance para novo intercâmbio no Mercosul: troca de maus exemplos para uso no marketing político.


LUIS ESNAL, correspondente no Brasil do jornal argentino "La Nación", escreve mensalmente nesta seção, às quintas



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