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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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RAÍZES DA DESIGUALDADE

Intelectuais discutem os motivos que levam o Brasil a ser o sexto país mais desigual do mundo

País patina para enfrentar seu fosso social

João Wainer/Folha Imagem
Na carroça de catar papel de seu pai, J., de dois anos e meio, recebe um pedaço de comida, na av. Henrique Schaumman, em SP


PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma era de extrema desigualdade. Assim pode ser definido o século 20 para o Brasil, como mostra a compilação de cem anos de estatísticas lançada na semana passada pelo IBGE. O que os números não respondem é: por quê?
Não há respostas simples nem fáceis. À busca delas estiveram formadores do pensamento nacional como Caio Prado Jr., Celso Furtado, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, para citar os mais óbvios.
"As razões históricas são clássicas: quatro séculos de escravidão, uma estrutura agrária oligopolizada; uma economia voltada para o mercado externo. Mas a escravidão, por exemplo, já se foi há mais de cem anos e a desigualdade não mudou. Então entram também as razões de ordem política e social", sintetiza José Murilo de Carvalho, doutor em ciência política pela Universidade de Stanford (EUA) e professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Para Roberto Mangabeira Unger, perto de completar 30 anos como professor de direito da Universidade Harvard, o Brasil foi organizado desde o início para ser desigual. A interrupção da desigualdade exige mais audácia dos brasileiros -e sobretudo da classe média brasileira- do que quiseram ou puderam demonstrar.
"A classe endinheirada nunca teve por que mudar isso. A classe pobre nunca teve como mudar isso. E a classe média -que em tese teve por que e teve como- raramente teve estômago", analisa.

Pecado original
O Brasil encerrou o século 20 como o país com a sexta pior distribuição de renda do mundo, segundo as Nações Unidas, atrás apenas de Namíbia, Botsuana, Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia.
Na visão de Nelson do Valle Silva -doutor em sociologia pela Universidade de Michigan e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)-, além do "pecado original da escravatura", a moderna desigualdade no Brasil tem três fontes principais:
1) a concentração fundiária, base da modernização conservadora no campo;
2) o baixo nível geral e a desigualdade na educação do trabalhador;
3) as vantagens usufruídas pela posições de privilégio associadas aos mais variados nichos de proteção, que vão do tratamento diferenciado no setor público às "quase-rendas" produzidas pela estrutura oligopolística ("reservas", subsídios e outras proteções de mercado similares) que calçou a lógica do processo de industrialização nacional.
Para Valle Silva, a concentração fundiária é um "pano de fundo" constante ao longo de todo o processo da construção da desigualdade brasileira. Os desníveis de educação se tornam "mais relevantes ou visíveis" em momentos de crescimento econômico.
E os nichos de proteção e vantagem intensificam a desigualdade em momentos de crise recessiva, em que o jogo distributivo se torna de soma zero.

Perversidade
Os números do IBGE mostram que a concentração de renda no Brasil se ampliou continuamente da década de 60 até a de 90.
No índice de Gini -parâmetro usado para medir a concentração de renda, que varia de zero a um, sendo quanto mais perto de zero melhor a distribuição de renda- o país iniciou os anos 60 com taxa de 0,50 e começou os 90 com 0,63. Houve uma pequena melhora nessa última década, com o índice recuando para 0,59 em 1999.
Esse último indicador é aparentemente uma boa notícia, mas pode esconder mais uma perversidade, na análise de Fábio Wanderley Reis, doutor em ciência política pela Universidade Harvard e professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Provavelmente, diz ele, expressa antes a redução das oportunidades de ganho da elite, com o limitado dinamismo da economia no período recente, do que melhorias de renda dos mais pobres.
"O problema é que, nas condições de grande desigualdade social, até mesmo as melhorias iniciais podem ter consequências negativas, despertando expectativas e aspirações que não podem ser atendidas e favorecendo a violência e a criminalidade, cujo crescimento temos visto."
José Murilo de Carvalho afirma que a melhora da educação é um "fator extraordinário" de redução da desigualdade, porque permite um emprego melhor e por seus efeitos políticos também.
"Um ponto crucial da desigualdade é o grau baixíssimo de educação mantido até o final do século passado, com uma grande taxa de analfabetismo. Isso forma um cidadão pouco reivindicativo."
A necessidade de investimento na formação educacional é um ponto consensual. Mangabeira Unger acredita que os mecanismos que reproduzem as desigualdades no Brasil hoje não são diferentes dos que operam em outros países. São só diferentes em grau.
O mais importante seria o efeito da transmissão familiar da propriedade e das oportunidades de educação.

Tensão social
A melhora da desigualdade tem de ser acompanhada por mais educação e, consequentemente, por mais tensão social, na análise de José Murilo de Carvalho.
"As mudanças não ocorrem sem que sejam feitas pressões contra os grupos encastelados no poder. Não falo só das elites, mas dos setores organizadores."
Ele cita como exemplo o dos trabalhadores sindicalizados, que recentemente reduziu o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) que incide sobre carros.

Antecipação às pressões
Pesquisa do Pnud (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas) mostra que houve na última década um aumento das transferências diretas de dinheiro do governo para os cidadãos. Representavam 10,3% da renda em 1991 e atingiram 14,7% em 2000.
Para o historiador da UFRJ, a melhora na política social é uma antecipação às pressões de movimentos organizados.
Segundo Carvalho, em geral, as mudanças acontecem quando há uma base social com agressividade, em que algumas ações até ultrapassam o limite da legalidade.


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