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Carta resistiu a 62 emendas e à pressão por reformas
Mudanças deixaram de ser prioridade nas agendas do governo e da oposição
A trégua reformista coincide com a combinação, inédita desde a sua promulgação, de crescimento da economia e de estabilidade política
GUSTAVO PATU
FERNANDA ODILLA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Dez anos atrás, o texto original da Constituição brasileira
parecia precocemente destinado aos museus legislativos. Naquele 1998, foram aprovadas
reformas na Previdência Social
e na administração pública,
com a antes impensável quebra
da estabilidade dos servidores;
reformas tributária, trabalhista
e política estavam na fila; a telefonia já não era monopólio estatal e passava pela maior privatização da história do país.
Hoje, quando completa 20
anos, a Constituição sobrevive
sob uma trégua inédita -e não
apenas porque neste ano nem
sequer uma proposta de emenda foi aprovada até agora pelo
Congresso. Mais importante,
as reformas deixaram de ser a
prioridade das agendas do governo e da oposição; a mais recente, no Judiciário, ocorreu
em 2004; a tributária, a trabalhista e a política continuam na
fila, sob descrédito geral.
Nos últimos anos, as emendas se tornaram menos ambiciosas e mais fiéis ao espírito do
texto original, que compreende
uma seguridade social de ambições suecas, relações trabalhistas mediadas pelo Estado nos
moldes do fascismo italiano,
uma mistura de presidencialismo americano com parlamentarismo europeu, populismo,
corporativismo e clientelismo
conforme as tradições locais.
Em 2005, por exemplo, foi
revista a reforma previdenciária promovida pelo governo
Lula, e direitos antes qualificados como privilégios indevidos
foram restabelecidos. No ano
seguinte, foi abortado um princípio de reforma política originado no Judiciário, que tentava
disciplinar as coligações eleitorais. No ano passado, foi elevado o repasse obrigatório de verbas federais aos municípios.
Bonança
A trégua reformista coincide
com uma combinação, também
inédita desde 1988, de estabilidade política e vitalidade econômica. Ainda que resultado de
um já encerrado ciclo de prosperidade global, a bonança doméstica tornou menos custosas
as metas dos constituintes e enfraqueceu a agenda liberal: tornou-se improdutivo politicamente insistir em emendas polêmicas ou impopulares que já
não parecem tão urgentes.
A última eleição presidencial
explicitou o abandono do discurso reformista que marcou
os dois governos de Fernando
Henrique Cardoso e o primeiro
de Lula. Tucanos e petistas renegaram publicamente todas
as propostas de controle dos
gastos sociais e flexibilização
das relações trabalhistas que
estudavam até as vésperas da
campanha como forma de estimular a economia. No ano seguinte, o vitorioso Lula só se
empenhou na emenda que
prorrogava a CPMF. Perdeu.
Ainda há centenas de propostas de reforma em tramitação no Congresso, algumas delas com o carimbo do Planalto,
mas nenhuma com chances visíveis de reunir o apoio necessário. Mesmo o projeto de reforma tributária apresentado
neste ano foi logo trocado por
uma tentativa pouco convincente de ressuscitar a CPMF
sem emenda constitucional.
"Ingovernável"
Por fugaz que possa ser, o
bom momento econômico e
sua contribuição à popularidade de Lula dão argumentos aos
críticos da tese, resumida há 20
anos pela declaração do então
presidente José Sarney, de que
a Constituição havia tornado o
país "ingovernável". "Isso não
faz o menor sentido. O país está
sendo governado e bem governado. Temos uma boa Constituição, democrática e moderna,
capaz de enfrentar os problemas da atualidade", diz o tucano Luiz Carlos Bresser-Pereira,
ex-ministro da Fazenda de Sarney e um dos pais da reforma
administrativa de FHC.
Essa governabilidade, porém, é acompanhada de uma
série de artifícios e improvisos.
Desde 1995 está em vigor uma
regra de caráter transitório que
permite ao governo não cumprir integralmente os gastos sociais obrigatórios pela Constituição. Na área política, as regras constitucionais costumam
ser responsabilizadas pela distribuição de cargos e verbas
-fora expedientes mais heterodoxos- à qual os governos
recorrem para manter coesa
sua base partidária.
"O preço de governar o país
com a atual Constituição é alto
demais", reafirma Sarney, senador pelo PMDB do Amapá.
"E em vez de retirarmos matéria da Constituição, colocamos
mais", acrescenta, em referência às 62 emendas aprovadas.
Para Bresser, a defesa da
Constituição não significa a rejeição a alterações: "Constituição não deve ser tabu como nos
Estados Unidos. Constituições
modernas são mais detalhistas
e é natural emendá-las com freqüência". Ele avalia que houve,
de fato, abusos "populistas" no
texto, como nas aposentadorias
dos servidores públicos.
O mais urgente
Para o cientista político Carlos Ranulfo, da Universidade
Federal de Minas Gerais, as reformas mais urgentes já foram
feitas: "No início dos governos
de FHC e Lula a necessidade de
reformas era imperiosa, muito
mais do que agora". O ministro
Nelson Jobim (Defesa), ex-constituinte e ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal,
concorda: "As outras [reformas] são circunstanciais".
No início da administração
tucana, quando o pensamento
neoliberal vivia seu auge no
país, foram quebrados os monopólios estatais em áreas como petróleo e telecomunicações, além de eliminadas barreiras contra a atuação de empresas estrangeiras no país.
Lula, ao assumir o governo,
surpreendeu com a retomada
da agenda de reformas, começando pela mais impopular, a
previdenciária -que, como na
gestão tucana, ficou inacabada.
"A pressão por reformas é cíclica. A da Previdência logo logo vai voltar", diz Ranulfo. Enquanto não volta, Lula tratou
do tema, em seu segundo mandato, à moda petista: um longo
fórum de discussões.
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