São Paulo, sexta-feira, 05 de novembro de 2004

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QUESTÃO MILITAR

Especialista na relação entre militares e civis, Zaverucha diz que Viegas não quis papel de "rainha da Inglaterra"

Queda expõe falha institucional, diz analista

FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO

A renúncia de José Viegas revela um problema institucional do Ministério da Defesa, que já nasceu fraco, com a figura do "ministro rainha da Inglaterra", "despachante dos militares".
A análise é do cientista político Jorge Zaverucha, 48, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Autor de "Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares (1990-1998)", ele diz que a pasta foi criada para que o Brasil pleiteasse posto no Conselho de Segurança da ONU, e não para "estabelecer controle civil sobre os militares". "Viegas começou a cair antes de assumir", diz ele.
 

Folha - Como o sr. avalia a saída de Viegas da Defesa?
Jorge Zaverucha
- Voltemos à criação do ministério. A criação por FHC não foi um passo para estabelecer um controle civil sobre os militares. Foi criado para favorecer a candidatura do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, porque era incompatível reunir os ministros da Defesa dos países e o Brasil ser representado por generais. O primeiro relator do projeto, Benito Gama, disse à época que, do jeito que estava no projeto, o ministro da Defesa seria uma "rainha da Inglaterra". O ministério já nasceu fragilizado, para ser despachante dos interesses dos militares. Toda vez que assumir um ministro que não queira se comportar assim, vai sair. Com Viegas, foi mais dramático: ele começou a cair antes de assumir. Lula escolheu primeiro os comandantes militares e indagou se aceitavam Viegas. Subverteu a hierarquia. Era como se Viegas fosse refém. Quando houver um choque entre Viegas e o comandante do Exército vai prevalecer quem? Isso é um problema institucional, muito mais que pessoal. Vai ver ele [Viegas] não quis esse papel de rainha da Inglaterra. Quem não quiser ser rainha da Inglaterra vai entrar em choque. Por outro lado, sem choque, não avança a democracia.

Folha - Na renúncia, Viegas critica o Exército ao defender que os escritores das primeira nota sobre o caso Herzog "saiam de cena". Qual o tamanho desse setor no Exército? Zaverucha - Vejamos o processo de transição brasileira. Na transição, os militares se sentiram fiadores da Nova República. Disseram: "Vamos admitir uma democracia eleitoral desde que vocês não interfiram em domínios reservados nossos: a Polícia Militar, a Justiça Militar, tudo vai continuar do jeito que a gente quer, os arquivos da repressão não serão abertos". Isso são os termos do pacto de transição. Essa área é nossa e aqui a democracia não entra. Os termos desse pacto estão entranhados na Constituição. Se o Viegas só descobriu isso agora...
Esses [defensores da nota de Herzog] não deveriam estar fora de cena agora, deveriam estar há muito tempo. A mídia e parte da academia passam a visão, ao meu ver equivocada, de que a democracia no Brasil está consolidada. É uma democracia frágil. Tão frágil que o presidente não tem autoridade para mandar abrir os arquivos [da repressão].

Folha - O governo cogitou rever o decreto de FHC sobre sigilo, abrir arquivos. Esse pacto com os militares está sendo revisado?
Zaverucha
- Não. A prova é essa: quem está saindo é o ministro, e não o comandante do Exército. Viegas dizia que os documentos do Araguaia foram incinerados. A primeira nota [do caso Herzog] diz que todos os documentos foram incinerados. A segunda nota não toca no tema. Essa segunda, que a imprensa erroneamente viu como retratação, não mudou os aspectos básicos, só o tom. Esse ponto dos arquivos é básico: "Nós vamos decidir sobre isso, não é o presidente, não é o Congresso, não é o ministro". O que pode acontecer [sobre a abertura dos arquivos] é o governo, para tentar não ficar mal com a sociedade, mostrar a ponta do iceberg. Se tudo foi incinerado, o que existe para ser aberto? Se vier a ser aberto, vão ser coisas irrelevantes.

Folha - A nomeação do vice-presidente para o cargo é sinal de prestígio para os militares?
Zaverucha
- Exatamente. O grau de insatisfação das Forças Armadas é tão alto que para aplacar a fera Lula quis sinalizar aos quartéis. Nomeou alguém de muita influência, para a hora em que eles quiserem aumento salarial. Alguém que tem canal direto com o presidente, e que é, eventualmente, o próprio presidente.


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