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ENTREVISTA DA 2ª
Para ministro mexicano, resultado das reformas econômicas na América Latina é decepcionante
Lula testará democracia, diz Castañeda
31.dez.2002/Folha Imagem
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O ministro mexicano Jorge Castañeda durante entrevista no Rio de Janeiro, onde esteve na semana passada, antes de viajar a Brasília para assistir à posse de Lula |
MARCELO BERABA
DIRETOR DA SUCURSAL DO RIO
A América Latina realizou, nas
últimas duas décadas, mudanças
políticas importantes que se expressam no fortalecimento da democracia em vários países. Mas
essas transformações não resultaram até agora em avanços econômicos e, menos ainda, em ganhos
sociais. A região continua marcada pelas desigualdades e pela
imobilidade social.
Por essa razão, o ministro das
Relações Exteriores do México, o
cientista político e escritor Jorge
Castañeda, considera que o novo
governo de esquerda do Brasil será "uma boa oportunidade para
ver se a democracia na América
Latina serve realmente para responder às demandas populares e
para transformá-las em políticas
públicas".
Castañeda cita o exemplo do
próprio México, onde o presidente Vicente Fox, eleito em 2000
também com fortes expectativas
de mudanças, "não consegue fazer coisas realmente diferentes
devido à rigidez fiscal".
Em relação à crise da Venezuela,
onde a oposição pressiona pela
renúncia do presidente Hugo
Chávez ou pela antecipação de
eleições, Castañeda defende que
ela não poderá ser resolvida com
o apoio externo a apenas uma das
partes envolvidas.
Essa posição contém uma crítica velada à iniciativa do Brasil, tomada em comum acordo entre
Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Inácio Lula da Silva, de enviar um carregamento de gasolina
para ajudar o presidente venezuelano a superar o racionamento de
combustível provocado pela greve geral convocada pela oposição,
que já dura mais de um mês.
"Precisamos ser muito cuidadosos nesse assunto. Não [podemos" confundir a defesa da institucionalidade venezuelana com o
apoio a uma das partes (...). Se
não se reduz a polarização por
meio de acordos entre as duas
partes, o que se romperá será exatamente a institucionalidade."
Jorge Castañeda,
que defende a formação de um eixo
Brasil-México-Chile para atuar
em organismos
internacionais,
tem 49 anos e é autor do livro de ensaios "Utopia Desarmada" e de
uma biografia de
Che Guevara, ambos editados pela
Companhia das
Letras.
Ele começa a trabalhar no projeto
de uma nova obra
sobre a América
Latina, cujo título,
"Un Siglo de Ausencia" [Um Século de Ausência], é
inspirado em um
bolero de Alfredo
Gil, do trio Los
Panchos.
O ministro mexicano esteve no
Brasil durante uma semana para a
posse de Lula. Antes de ir para
Brasília, descansou no Rio de Janeiro, onde foi à praia, assistiu a
um show de Gilberto Gil e a um
ensaio da Mangueira e bebeu chope com amigos. A entrevista foi
feita no dia 31 de dezembro em
um hotel de Ipanema (zona sul).
Folha - Como o senhor analisa a
eleição de Lula?
Jorge Castañeda - Pela primeira
vez num país do tamanho e da
importância do Brasil, e de maneira tão transparente, um dirigente operário e popular chega,
pela via democrática, à Presidência. É um fato de enorme simbolismo num continente onde a desigualdade e a imobilidade social
vêm sendo a regra. Nesse sentido,
é muito importante. Além do
simbólico, será uma oportunidade para ver se a democracia na
América Latina serve realmente
para responder às demandas populares e para transformá-las em
políticas públicas.
Folha - Há dúvidas sobre isso?
Castañeda - Em muitas ocasiões
ocorreu que os eleitos não puderam atender às demandas que os
eleitores formularam através das
eleições. O que vamos saber é se
há outro caminho possível. Todos
esperamos que haja. Essa dúvida
não tem nada a ver com Lula ou
com o Brasil, tem a ver com a globalização, com os compromissos
internacionais dos países da
América Latina, tem a ver com a
rigidez das estruturas sociais.
A eleição do presidente [Vicente" Fox respondeu a uma enorme
demanda de mudanças sociais
depois de 20 anos
de políticas muito
conservadoras. Ele
tem feito todo o
possível para atender a essas demandas, mas o primeiro limite que teve
foi a rigidez fiscal.
Ao tentar fazer
uma reforma fiscal
para aumentar a
arrecadação do
Estado e promover políticas sociais mais sólidas,
imediatamente se
defrontou com a
impossibilidade
de levar a cabo
uma reforma fiscal
ambiciosa.
Os eleitores votaram por uma
política social, e
até agora o presidente Fox, com
um mandato
igualmente popular e num contexto
de transição histórica semelhante a
de Lula, não conseguiu fazer coisas realmente diferentes devido à
rigidez fiscal.
Folha - Como superar essa armadilha?
Castañeda - Nós que acreditamos na democracia sabemos que
a única maneira de transferir poder é pela via eleitoral. O problema é que no mundo de hoje, com
a globalização, com os compromissos internacionais, com a ditadura dos mercados, com a necessidade que têm todos os países de
competir por investimentos estrangeiros, as margens são estreitas. Mais estreitas do que eram
obviamente há 50 anos.
Folha - Volto à pergunta: como
romper esse círculo?
Castañeda - Não sei. É o que todo mundo está buscando. Por isso vamos ver com enorme interesse e esperança a nova experiência brasileira.
Folha - Como o senhor avalia as
crises, de natureza diversas, que
estão ocorrendo na América Latina?
Castañeda - Seria arriscado encontrar um padrão geral para os
processos ocorridos na América
Latina nos últimos dois ou três
anos. Em todos esses países, com
a possível exceção do Chile, o resultado das reformas econômicas,
em alguns casos iniciadas há 20
anos, não está à altura nem das
promessas, nem das expectativas.
É só ver os números. As taxas de
crescimento da época da industrialização e da substituição de
importações, entre 1940 e 1980,
são muito melhores do que as dos
20 últimos anos de reformas estruturais. Isso sim é um problema
e é uma constante.
Folha - E esses
anos a que o senhor se refere de
mais crescimento
correspondem, na
maioria dos países
da América Latina,
a longos períodos
de regimes ditatoriais.
Castañeda - Depende dos países.
No Brasil, também
foram os anos de
[Juscelino" Kubitschek [1956-61"
e do [Getúlio"
Vargas democrático [1951-54". Mas
é um fato que as
novas políticas
econômicas e suas
reformas estruturais, com a exceção do Chile, não
geraram taxas de
crescimento como
as que foram geradas em períodos
anteriores.
Folha - Há uma
sensação de que a América Latina
vai ficando para trás.
Castañeda - A posse de Lula foi a
primeira no Brasil, em 40 anos,
em que um presidente eleito passa a faixa para um presidente eleito. O mesmo ocorreu na Argentina. No México, pela primeira vez
desde 1964 se transferiu o poder
de uma maneira realmente democrática e sem crise política ou
econômica. A região teve, portanto, grandes conquistas políticas.
Não acho que tenhamos de ter
uma visão catastrofista.
Folha - E qual o papel dos Estados
Unidos neste quadro?
Castañeda - Um dos grandes desafios das forças políticas e regimes que buscam uma atuação internacional que podemos chamar
de progressista é definir em que
consiste ser de esquerda em matéria internacional hoje. Para alguns
a resposta é muito fácil: é progressista ou de esquerda quem é antiamericano, ou pró-Cuba, ou
pró-Saddan Hussein. Não é simples. Considero que existe um
grande campo de atuação em matéria internacional para iniciativas progressistas que não são nem
pró nem antiamericanas nem têm
a ver com os critérios tradicionais
da esquerda. Têm a ver com a
construção de uma arquitetura
internacional nova: direitos humanos, ambiente, direitos das
mulheres, direitos indígenas, regras internacionais de comércio,
corte penal internacional, luta
contra a corrupção, contra o crime organizado, contra a proliferação de armas convencionais.
O que há hoje é uma enorme assimetria entre o resto do mundo e
os Estados Unidos. Não há antecedentes históricos recentes, e refiro-me a vários séculos, de uma desproporção de poder político, militar, econômico,
cultural como há
hoje por parte dos
Estados Unidos.
O que nós decidimos no México
foi construir um
sistema internacional que de alguma maneira imponha regras aos Estados Unidos. Regras que os Estados Unidos tenham de cumprir,
assim como os demais países. Tudo
que tenda a nivelar
é favorável ao resto do mundo, ainda que saibamos
que regras de
iguais entre desiguais são uma situação difícil.
Folha - É possível prever alguma
mudança no relacionamento entre
o México e o Brasil com o novo governo?
Castañeda - Esperamos que o
novo governo brasileiro veja muitos dos temas internacionais com
uma perspectiva semelhante à
que têm o México e o Chile. Há
um grande espaço multilateral e
regional em que países como México, Chile e Brasil podem trabalhar juntos. Eu acho que esse é o
verdadeiro eixo que temos de
construir. Brasil e México pelo tamanho, pela densidade, e o Chile
porque é um país muito sério e
tem uma grande estabilidade econômica e política. Pensamos que
podemos ver muitos dos problemas internacionais de maneira
semelhante e atuar juntos.
Folha - Que prioridades imediatas teria o eixo?
Castañeda - Dependeria de cada
governo. Para nós, alguns temas
são muito importantes. Exemplos: fortalecer tudo que diga respeito aos direitos humanos na
América Latina e nas Nações Unidas, fortalecer a Carta Democrática Interamericana, trabalhar juntos na Conferência de Segurança
Hemisférica da OEA (Organização dos Estados Americanos),
que será realizada no México em
maio e discutirá um novo conceito de segurança continental, trabalhar juntos na preparação da
conferência ministerial da OMC
(Organização Mundial do Comércio), que será realizada em setembro em Cancún (México).
Folha - Como o sr. analisa a situação na Venezuela, onde o enfrentamento entre o governo e a oposição
levou o país a um
impasse?
Castañeda - A
posição do México
tem sido, desde
abril, a de defender em primeiro
lugar a ordem
constitucional venezuelana. Em segundo, a de ver de
que maneira podemos ser úteis
para ajudar esse
país a sair de uma
situação muito difícil. Na Venezuela
existe uma situação que está fora
da normalidade
democrática.
Temos manifestado a nossa preocupação porque é
um país irmão,
porque há muitos
investimentos mexicanos na Venezuela, porque afeta o mercado internacional de petróleo e porque é
muito importante a defesa da
consolidação da democracia na
América Latina. Temos acompanhado [os fatos" de perto e apoiado o secretário-geral da OEA [Cesar Gaviria, que intermedeia os
conflitos".
Precisamos ser muito cuidadosos nesse assunto. Não [podemos" confundir a defesa da institucionalidade venezuelana com o
apoio a uma das partes, porque o
apoio a apenas uma das partes
inevitavelmente vai ser visto pela
outra parte como um ato hostil.
Creio que a única maneira de
avançar na Venezuela é buscar
um acordo entre as partes. É o que
Gaviria está tentando fazer.
Folha - A iniciativa do Brasil de
enviar gasolina para o governo de
Hugo Chávez favorece um dos lados e contraria esse princípio.
Castañeda - Não me compete
comentar, é uma decisão que corresponde aos venezuelanos e aos
brasileiros. A postura do México é
de princípios, mas também realista: há que se defender a normalidade constitucional da Venezuela, mas também é evidente que
existe uma polarização tremenda
na sociedade.
Se não se reduz a polarização
por meio de acordos entre as duas
partes, o que se romperá será exatamente a institucionalidade.
Qualquer iniciativa tem de contar
com o acordo e o apoio de ambas
as partes. Se não, não vai prosperar. Se não prospera, a única coisa
que estaremos fazendo é contribuindo para piorar a situação
num país que queremos muito.
Eu acredito que não há nenhuma iniciativa que
possa prosperar
que não inclua o
Brasil, pela proximidade geográfica
e pelos laços culturais, assim como é
difícil que qualquer iniciativa
prospere se não
envolver de alguma maneira os Estados Unidos. São
duas condições
importantes para
que as iniciativas
prosperem. E a
terceira é que as
duas partes estejam de acordo.
Folha - O México
sempre teve uma
relação muito próxima de Cuba e
agora, com Fox, esta relação vem se
deteriorando, a
ponto de gerar uma
crise como a que
ocorreu na Cúpula
da OEA em Monterrey, em 2002,
quando o ditador cubano, Fidel
Castro, se sentiu pressionado a deixar a cúpula antes da chegada do
presidente dos EUA, George Bush.
Castañeda - Não acho que tenha
havido deterioração nem crise. O
que há é uma adequação da relação do México com Cuba e de Cuba com o México com a mudança
que ocorreu no México. Não sei se
a relação tradicional era entre México e Cuba, entre o povo mexicano e o cubano ou entre o regime
do PRI [Partido Revolucionário
Institucional, que governou o México durante quase todo o século
20" e o regime atual de Cuba.
Estranho seria se uma mudança
tão grande como a que ocorreu no
México no ano 2000 [com a eleição de Vicente Fox" não tivesse
repercussão na política exterior.
Claro que teve, e não só com Cuba. E a razão não tem a ver com
problemas pessoais ou com Monterrey, mas com a ênfase que o governo do presidente Fox vem
dando à democracia e aos direitos
humanos.
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