São Paulo, segunda-feira, 06 de janeiro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

Para ministro mexicano, resultado das reformas econômicas na América Latina é decepcionante

Lula testará democracia, diz Castañeda

31.dez.2002/Folha Imagem
O ministro mexicano Jorge Castañeda durante entrevista no Rio de Janeiro, onde esteve na semana passada, antes de viajar a Brasília para assistir à posse de Lula


MARCELO BERABA
DIRETOR DA SUCURSAL DO RIO

A América Latina realizou, nas últimas duas décadas, mudanças políticas importantes que se expressam no fortalecimento da democracia em vários países. Mas essas transformações não resultaram até agora em avanços econômicos e, menos ainda, em ganhos sociais. A região continua marcada pelas desigualdades e pela imobilidade social.
Por essa razão, o ministro das Relações Exteriores do México, o cientista político e escritor Jorge Castañeda, considera que o novo governo de esquerda do Brasil será "uma boa oportunidade para ver se a democracia na América Latina serve realmente para responder às demandas populares e para transformá-las em políticas públicas".
Castañeda cita o exemplo do próprio México, onde o presidente Vicente Fox, eleito em 2000 também com fortes expectativas de mudanças, "não consegue fazer coisas realmente diferentes devido à rigidez fiscal".
Em relação à crise da Venezuela, onde a oposição pressiona pela renúncia do presidente Hugo Chávez ou pela antecipação de eleições, Castañeda defende que ela não poderá ser resolvida com o apoio externo a apenas uma das partes envolvidas.
Essa posição contém uma crítica velada à iniciativa do Brasil, tomada em comum acordo entre Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, de enviar um carregamento de gasolina para ajudar o presidente venezuelano a superar o racionamento de combustível provocado pela greve geral convocada pela oposição, que já dura mais de um mês.
"Precisamos ser muito cuidadosos nesse assunto. Não [podemos" confundir a defesa da institucionalidade venezuelana com o apoio a uma das partes (...). Se não se reduz a polarização por meio de acordos entre as duas partes, o que se romperá será exatamente a institucionalidade."
Jorge Castañeda, que defende a formação de um eixo Brasil-México-Chile para atuar em organismos internacionais, tem 49 anos e é autor do livro de ensaios "Utopia Desarmada" e de uma biografia de Che Guevara, ambos editados pela Companhia das Letras.
Ele começa a trabalhar no projeto de uma nova obra sobre a América Latina, cujo título, "Un Siglo de Ausencia" [Um Século de Ausência], é inspirado em um bolero de Alfredo Gil, do trio Los Panchos.
O ministro mexicano esteve no Brasil durante uma semana para a posse de Lula. Antes de ir para Brasília, descansou no Rio de Janeiro, onde foi à praia, assistiu a um show de Gilberto Gil e a um ensaio da Mangueira e bebeu chope com amigos. A entrevista foi feita no dia 31 de dezembro em um hotel de Ipanema (zona sul).
 

Folha - Como o senhor analisa a eleição de Lula?
Jorge Castañeda -
Pela primeira vez num país do tamanho e da importância do Brasil, e de maneira tão transparente, um dirigente operário e popular chega, pela via democrática, à Presidência. É um fato de enorme simbolismo num continente onde a desigualdade e a imobilidade social vêm sendo a regra. Nesse sentido, é muito importante. Além do simbólico, será uma oportunidade para ver se a democracia na América Latina serve realmente para responder às demandas populares e para transformá-las em políticas públicas.

Folha - Há dúvidas sobre isso?
Castañeda -
Em muitas ocasiões ocorreu que os eleitos não puderam atender às demandas que os eleitores formularam através das eleições. O que vamos saber é se há outro caminho possível. Todos esperamos que haja. Essa dúvida não tem nada a ver com Lula ou com o Brasil, tem a ver com a globalização, com os compromissos internacionais dos países da América Latina, tem a ver com a rigidez das estruturas sociais.
A eleição do presidente [Vicente" Fox respondeu a uma enorme demanda de mudanças sociais depois de 20 anos de políticas muito conservadoras. Ele tem feito todo o possível para atender a essas demandas, mas o primeiro limite que teve foi a rigidez fiscal. Ao tentar fazer uma reforma fiscal para aumentar a arrecadação do Estado e promover políticas sociais mais sólidas, imediatamente se defrontou com a impossibilidade de levar a cabo uma reforma fiscal ambiciosa.
Os eleitores votaram por uma política social, e até agora o presidente Fox, com um mandato igualmente popular e num contexto de transição histórica semelhante a de Lula, não conseguiu fazer coisas realmente diferentes devido à rigidez fiscal.

Folha - Como superar essa armadilha?
Castañeda -
Nós que acreditamos na democracia sabemos que a única maneira de transferir poder é pela via eleitoral. O problema é que no mundo de hoje, com a globalização, com os compromissos internacionais, com a ditadura dos mercados, com a necessidade que têm todos os países de competir por investimentos estrangeiros, as margens são estreitas. Mais estreitas do que eram obviamente há 50 anos.

Folha - Volto à pergunta: como romper esse círculo?
Castañeda -
Não sei. É o que todo mundo está buscando. Por isso vamos ver com enorme interesse e esperança a nova experiência brasileira.

Folha - Como o senhor avalia as crises, de natureza diversas, que estão ocorrendo na América Latina?
Castañeda -
Seria arriscado encontrar um padrão geral para os processos ocorridos na América Latina nos últimos dois ou três anos. Em todos esses países, com a possível exceção do Chile, o resultado das reformas econômicas, em alguns casos iniciadas há 20 anos, não está à altura nem das promessas, nem das expectativas. É só ver os números. As taxas de crescimento da época da industrialização e da substituição de importações, entre 1940 e 1980, são muito melhores do que as dos 20 últimos anos de reformas estruturais. Isso sim é um problema e é uma constante.

Folha - E esses anos a que o senhor se refere de mais crescimento correspondem, na maioria dos países da América Latina, a longos períodos de regimes ditatoriais.
Castañeda -
Depende dos países. No Brasil, também foram os anos de [Juscelino" Kubitschek [1956-61" e do [Getúlio" Vargas democrático [1951-54". Mas é um fato que as novas políticas econômicas e suas reformas estruturais, com a exceção do Chile, não geraram taxas de crescimento como as que foram geradas em períodos anteriores.

Folha - Há uma sensação de que a América Latina vai ficando para trás.
Castañeda -
A posse de Lula foi a primeira no Brasil, em 40 anos, em que um presidente eleito passa a faixa para um presidente eleito. O mesmo ocorreu na Argentina. No México, pela primeira vez desde 1964 se transferiu o poder de uma maneira realmente democrática e sem crise política ou econômica. A região teve, portanto, grandes conquistas políticas. Não acho que tenhamos de ter uma visão catastrofista.

Folha - E qual o papel dos Estados Unidos neste quadro?
Castañeda -
Um dos grandes desafios das forças políticas e regimes que buscam uma atuação internacional que podemos chamar de progressista é definir em que consiste ser de esquerda em matéria internacional hoje. Para alguns a resposta é muito fácil: é progressista ou de esquerda quem é antiamericano, ou pró-Cuba, ou pró-Saddan Hussein. Não é simples. Considero que existe um grande campo de atuação em matéria internacional para iniciativas progressistas que não são nem pró nem antiamericanas nem têm a ver com os critérios tradicionais da esquerda. Têm a ver com a construção de uma arquitetura internacional nova: direitos humanos, ambiente, direitos das mulheres, direitos indígenas, regras internacionais de comércio, corte penal internacional, luta contra a corrupção, contra o crime organizado, contra a proliferação de armas convencionais.
O que há hoje é uma enorme assimetria entre o resto do mundo e os Estados Unidos. Não há antecedentes históricos recentes, e refiro-me a vários séculos, de uma desproporção de poder político, militar, econômico, cultural como há hoje por parte dos Estados Unidos.
O que nós decidimos no México foi construir um sistema internacional que de alguma maneira imponha regras aos Estados Unidos. Regras que os Estados Unidos tenham de cumprir, assim como os demais países. Tudo que tenda a nivelar é favorável ao resto do mundo, ainda que saibamos que regras de iguais entre desiguais são uma situação difícil.

Folha - É possível prever alguma mudança no relacionamento entre o México e o Brasil com o novo governo?
Castañeda -
Esperamos que o novo governo brasileiro veja muitos dos temas internacionais com uma perspectiva semelhante à que têm o México e o Chile. Há um grande espaço multilateral e regional em que países como México, Chile e Brasil podem trabalhar juntos. Eu acho que esse é o verdadeiro eixo que temos de construir. Brasil e México pelo tamanho, pela densidade, e o Chile porque é um país muito sério e tem uma grande estabilidade econômica e política. Pensamos que podemos ver muitos dos problemas internacionais de maneira semelhante e atuar juntos.

Folha - Que prioridades imediatas teria o eixo?
Castañeda -
Dependeria de cada governo. Para nós, alguns temas são muito importantes. Exemplos: fortalecer tudo que diga respeito aos direitos humanos na América Latina e nas Nações Unidas, fortalecer a Carta Democrática Interamericana, trabalhar juntos na Conferência de Segurança Hemisférica da OEA (Organização dos Estados Americanos), que será realizada no México em maio e discutirá um novo conceito de segurança continental, trabalhar juntos na preparação da conferência ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio), que será realizada em setembro em Cancún (México).

Folha - Como o sr. analisa a situação na Venezuela, onde o enfrentamento entre o governo e a oposição levou o país a um impasse?
Castañeda -
A posição do México tem sido, desde abril, a de defender em primeiro lugar a ordem constitucional venezuelana. Em segundo, a de ver de que maneira podemos ser úteis para ajudar esse país a sair de uma situação muito difícil. Na Venezuela existe uma situação que está fora da normalidade democrática.
Temos manifestado a nossa preocupação porque é um país irmão, porque há muitos investimentos mexicanos na Venezuela, porque afeta o mercado internacional de petróleo e porque é muito importante a defesa da consolidação da democracia na América Latina. Temos acompanhado [os fatos" de perto e apoiado o secretário-geral da OEA [Cesar Gaviria, que intermedeia os conflitos".
Precisamos ser muito cuidadosos nesse assunto. Não [podemos" confundir a defesa da institucionalidade venezuelana com o apoio a uma das partes, porque o apoio a apenas uma das partes inevitavelmente vai ser visto pela outra parte como um ato hostil. Creio que a única maneira de avançar na Venezuela é buscar um acordo entre as partes. É o que Gaviria está tentando fazer.

Folha - A iniciativa do Brasil de enviar gasolina para o governo de Hugo Chávez favorece um dos lados e contraria esse princípio.
Castañeda -
Não me compete comentar, é uma decisão que corresponde aos venezuelanos e aos brasileiros. A postura do México é de princípios, mas também realista: há que se defender a normalidade constitucional da Venezuela, mas também é evidente que existe uma polarização tremenda na sociedade.
Se não se reduz a polarização por meio de acordos entre as duas partes, o que se romperá será exatamente a institucionalidade. Qualquer iniciativa tem de contar com o acordo e o apoio de ambas as partes. Se não, não vai prosperar. Se não prospera, a única coisa que estaremos fazendo é contribuindo para piorar a situação num país que queremos muito.
Eu acredito que não há nenhuma iniciativa que possa prosperar que não inclua o Brasil, pela proximidade geográfica e pelos laços culturais, assim como é difícil que qualquer iniciativa prospere se não envolver de alguma maneira os Estados Unidos. São duas condições importantes para que as iniciativas prosperem. E a terceira é que as duas partes estejam de acordo.

Folha - O México sempre teve uma relação muito próxima de Cuba e agora, com Fox, esta relação vem se deteriorando, a ponto de gerar uma crise como a que ocorreu na Cúpula da OEA em Monterrey, em 2002, quando o ditador cubano, Fidel Castro, se sentiu pressionado a deixar a cúpula antes da chegada do presidente dos EUA, George Bush.
Castañeda -
Não acho que tenha havido deterioração nem crise. O que há é uma adequação da relação do México com Cuba e de Cuba com o México com a mudança que ocorreu no México. Não sei se a relação tradicional era entre México e Cuba, entre o povo mexicano e o cubano ou entre o regime do PRI [Partido Revolucionário Institucional, que governou o México durante quase todo o século 20" e o regime atual de Cuba.
Estranho seria se uma mudança tão grande como a que ocorreu no México no ano 2000 [com a eleição de Vicente Fox" não tivesse repercussão na política exterior. Claro que teve, e não só com Cuba. E a razão não tem a ver com problemas pessoais ou com Monterrey, mas com a ênfase que o governo do presidente Fox vem dando à democracia e aos direitos humanos.



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