São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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JANIO DE FREITAS

Escola do crime

Dentre os números, poucos, presentes na informação, o escolhido para dar ao fato a dimensão noticiosa foi o 147. Em todos os jornais impressos, de TV e de rádio: 147 presos fogem pela frente em delegacia de São Paulo. Foi no 27º DP. Nos números considerados irrelevantes, e por isso soterrados na avalanche de palavras, figuravam estes outros: a cadeia do 27º DP, com capacidade para 30 presos, continha 190.
O que é mais expressivo, que 147 tenham fugido ou que 190 pessoas sejam acumuladas no espaço para 30? Os jornalistas que fizeram a escolha não erraram. O jornalismo faz a operação complexa de lançar um imenso jornal de um dia para o outro, às vezes em horas, mas é uma das atividades mais lerdas, um acúmulo de muitas burocracias que leva décadas para dar um passo além da repetição do que faz e como faz todos os dias.
Os jornalistas não erraram também porque sua escolha emergiu do sentimento social, e portanto deles próprios, de que o mais ameaçador para a sociedade é a fuga dos presos. O demais é da responsabilidade da polícia, do sistema carcerário, do governo.
Apesar dessas duas fortes razões, o jornalismo ainda chegará à unanimidade de títulos assim: "Cadeia para 30 presos tinha 190: 147 fugiram". Então os valores humanos e os princípios ditos civilizados terão conquistado alguma presença.
É inútil a tentativa de imaginar as condições, sejam as físicas ou as psicológicas, de 190 pessoas que se oprimem no espaço para 30. Que última atitude ainda humana, antes que o desespero desperte a besta-fera ou a degradação anule até o instinto, pode alguém tomar ali senão a busca da fuga?
No Brasil enraizou-se a idéia de que a cadeia é escola do crime. Será a cadeia? Ou a escola do crime é a sociedade que, por suas representações políticas e institucionais, cria e preserva condições das quais o ser humano é levado a sair como ser desumano, se ainda não o era depois das experiências precedentes?
Enjaular 190 pessoas no espaço para 30 é tão normal que disso só se sabe, quando se sabe, a meio da leitura persistente de uma notícia desagradável. O governador Geraldo Alckmin não recebeu críticas pela fuga, facilitada por um carcereiro, até porque, como é próprio da mídia paulista, o episódio negativo para a vida paulistana foi depressa esquecido.
No Rio, os governantes são surrados pela mídia global porque um bando de presos, todos há muito preparados para agir como seres desumanos, trucidaram 30 rivais e ainda um guarda. Não se sabe, aliás, o que mais motiva as críticas, se o fato de que os governantes, como os de São Paulo, não adivinharam que um carcereiro abriria as grades para a rebelião, ou se o chamado de um pastor evangélico, aceito no presídio, para aplacar o conflito. A mídia do catolicismo faz por ignorar que um pastor evangélico só é chamado por presos aos quais faltou um pastor católico.
Assim como a polícia não pode prever onde haverá mais um dos diários seqüestros em São Paulo e, no Rio, outro dos constantes ataques de traficantes, não há como prever a ação nefasta de um carcereiro comprado ou ameaçado. Os governantes não têm culpa nas ocorrências de prevenção impossível. Mas os casos de São Paulo e Rio deveriam soar como berros de alarme, e alarmante é que não sejam ouvidos assim.
As duas faces da ferocidade -a da cadeia de São Paulo e a do massacre no Rio- são evidências clamorosas de que a escola do crime e seus frutos atingem o paroxismo. Não são as primeiras evidências, é claro. Mas as circunstâncias, os locais e a bestialidade exibidas clamam -em vão, vê-se- por um basta na exploração política da violência e pela volta ao ponto de partida, enfim com seriedade, nas reflexões sobre modos de esvaziar a escola do crime. Enquanto há tempo. E as duas mais ricas e bem dotadas cidades do país mostram, mais uma vez, que não há muito tempo.


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